A vida quase afásica do professor Mosh
Primeira Parte
A fase afásica
Primeira Parte
A fase afásica
Chamam-me de professor Mosh.
Posso dizer que não tive filhos.
Tenho 63 anos e sou professor de filosofia do ensino médio.
Todos os dias exceto nos finais de semana acerto o meu relógio para acordar logo pela manhã.
Às 5h50 já estou de pé.
Levanto, tomo o meu banho, preparo o meu café e dirijo-me à escola.
Às 7h00, já estou na sala de aula.
E é nesse interregno de tempo que revivo fragmentos de minha vida.
Nasci no ano de 1960.
Ano em que o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou Brasília.
Não possuo recordações dos meus primeiros anos de vida.
Estamos no ano 2023 e John Locke parece-me ainda bastante contemporâneo.
Não chego a dizer que sou um empirista arraigado, mas ancoro-me em sua tabula rasa para justificar essa amnésia de meus primeiros anos.
As recordações que me assomam são esparsas e não se constituem como um sistema organizado e hegeliano.
Escrevo no dia 25 de outubro, numa quinta-feira plúmbea de uma tarde melancólica.
É véspera de eleição para a presidência da República de meu país.
Estou em minha residência.
Ligo e desligo a TV.
Ao meu lado, livros que tento ler.
Neste exato momento toca a campainha de casa.
Minha esposa foi atender.
Aqui no sofá tento remorar fatos de minha vida.
Tento dar sentido às coisas que me rodeiam.
Sobre a mesa uma agenda vazia.
Zapeio a TV.
Minha esposa retorna.
Zapeio a TV.
Um pastor ensandece o seu público.
Zapeio a TV.
A memória mais um vez me escapa.
Cochilo.
Já que não consigo organizar-me cronologicamente, vou tentar contar fatos de minha vida.
Mas a memória mais uma vez falha.
Faço um esforço além de meus desgastados neurônios.
Tenho pequenas lembranças.
Lembro-me de um dia chuvoso de 1965.
Lembro de uma tarde chuvosa.
Lembro que eu olhava pela janela.
Lembro de peras castigadas pelo temporal.
A memória mais uma vez em escapa.
Há saltos em minha memória.
Agora relembro o dia de ontem.
As lembranças embaraçam-me.
O sono domina a minha memória.
Acordo depois de um pequeno cochilo.
Ponho-me mais uma vez a pensar.
Por que algumas coisas ficaram-me marcadas na lembrança e outras não?
Por exemplo, lembro-me agora de um avião que sobrevoava a minha casa.
E eu mais uma vez me pergunto.
Por quê...
Tenho um leve bloqueio.
Intuo uma possível disfunção...
Imediatamente agarro-me à memória...
A memória mais uma vez me escapa.
Dou um leve cochilo.
Acordei tarde.
Acordei sonolento.
Sinal de pequenos pesadelos advindos possivelmente de uma disfunção hiperglicêmica.
Minha mulher neste exato momento tenta consertar uma torneira que insiste em vazar.
Pede-me para ir até o vizinho para solicitar-lhe um alicate.
Recalcitro o pedido; mas cedo.
Como se não bastasse, a nossa cachorra sangra como uma mulher menstruada, por conta de alguma patologia.
Volto do vizinho sem o alicate.
O sono me assoma.
Somo a tudo isso uma leve depressão passageira.
Sinto o cheiro de arroz queimado.
Irrito-me com a possibilidade de um possível incêndio.
Cochilo.
Checo mais de uma vez a torneira do gás.
Talvez seja os primeiros sinais de TOC.
Vou à minha biblioteca e folheio alguns livros
Lá mesmo na biblioteca cochilo...
Já passa do meio-dia e ainda não fui votar.
Quero livrar-me rapidamente dessa obrigação "democrática".
Antes, porém, danço com Raquel.
Há dias de felicidade no amor.
Depois da danças, subo as escadas de minha casa.
Escada de granito com salpicados detalhes.
Dirijo-me à minha biblioteca.
Folheio alguns livros.
Mas nada no momento me interessa.
Cochilo.
Fui há pouco levar Bonny para um passeio.
À tarde, fiz a minha pequena sesta.
Antes havia votado no colégio.
Passo rapidamente na casa de minha mãe.
Almoço macarrão e peixe.
Recebo de meu irmão uma seleta de Ivan Junqueira.
Leio alguns florilégios.
Leio páginas esparsas de Negócios e Ócios de Boris Fausto.
Leio sobre os Sefaradis.
No livro, ficamos sabendo que um judeu não podia montar um animal nobre como o cavalo e só podia dispor de um ridículo burrico". Boris ainda informa em seu belo livro que " para não ser confundido com a, massa dos crentes, (o judeu) devia trazer uma rodela amarela sobre o peito, um turbante amarelo e um cinto de franjas."
Anuncia-se na TV a vitória do novo presidente.
Sinto uma mistura de esperança, solidão e acidia.
Ontem, não tive paciência para as especulações políticas da TV.
Estou farto de especialistas.
Projetam possíveis escândalos e alianças.
Não aguentei e fui dormir.
Bonny pede-me carinho.
Saio com Bonny pelas ruas.
Sento no banco da Praça.
Dia azulado.
Bonny é minha companheira.
Bonny esparrama-se na grama.
Bonny ama a natureza.
Eu amo Bonny.
Eu acho que eu e Bonny nos amamos.
Retorno para casa.
Olho para o relógio.
O que é o tempo?
O tempo é onde me encontro?
O tempo haverá sem mim?
Cachorros latem lá fora e cortam o silêncio melancólico da noite.
São 20h38 de um dia qualquer.
O tempo escorre ou sou eu que escorro pelo tempo?
Já passa da meia-noite.
A pequena melancolia da noite anterior já se diissipou.
Torno a ter outra melan kholé aristotélica.
Dirijo-me à minha biblioteca.
Olho os livros.
Desisto de Platão em benefício de Sebald.
Leio trechos de Paul Bereyter.
Já são 7h00 e nem percebi o sono que me adveio na noite anterior.
Não passei das primeiras primeiras d' Os Emigrantes de Sebald.
Olho-me no espelho.
Olho mais uma vez no espelho.
Tomo coragem para o enfrentar mais um dia.
Aulas enfadonhas de filosofia.
Descartes.
Aristóteles.
Kant.
Mas quem se interessa?
A preguiça me invade.
Coloco na mochila Coetzee e Murakami.
SEGUNDA PARTE
Escritos
Encontro-me em minha biblioteca.
Há uma algaravia de escritos.
Leio textos que seriam possíveis ensaios ou anotações de ensaios.
Tudo resultou, por fim, nesse amontoado desconexo.
Leio texto por texto.
Não há uma ordem cronológica.
Tudo isso já denota os primeiros sintomas de minha quase afasia.
Hoje não fui lecionar.
Pensei em ir ao centro revisitar antigas livrarias, mas praticamente não saí de casa.
Fui levar Raquel ao trabalho.
Levei alguns papeis à lixeira.
Fui ao mecânico e paguei-lhe trezentos reais para consertar a embreagem do Twingo.
Recordo-me que meu amor ao Twingo surgiu quando li uma reportagem de Derrida.
Derrida foi ao encontro com o jornalista num Twingo antigo.
Entro no Facebook.
Publico as mesmas mensagens.
Ninguém lê.
Escrevo para ninguém.
É o tédio.
Cortei o cabelo.
Ouço fatos.
Ouço pseudofatos.
Percebo que envelheço a cada dia.
Adormeço.
Hoje não fui lecionar.
Pensei em ir ao centro revisitar antigas livrarias, mas praticamente não saí de casa.
Fui levar Raquel ao trabalho.
Levei alguns papeis à lixeira.
Fui ao mecânico e paguei-lhe trezentos reais para consertar a embreagem do Twingo.
Recordo-me que meu amor ao Twingo surgiu quando li uma reportagem de Derrida.
Derrida foi ao encontro com o jornalista num Twingo antigo.
Entro no Facebook.
Publico as mesmas mensagens.
Ninguém lê.
Escrevo para ninguém.
É o tédio.
Cortei o cabelo.
Ouço fatos.
Ouço pseudofatos.
Percebo que envelheço a cada dia.
Adormeço.
Lendo Perfis de Memoráveis de Caio Porfírio Carneiro.
(A Literatura brasileira não é só a ponta do iceberg, ela é o gelo todo desse imenso oceano. Busquemos nós os nossos escafandros, antes que o paitempo nos enterre também!)
Especial, porque com dedicatória do autor em 27.06.2002.
Sabemos de escritores, nesses pequenos perfis, que mal supúnhamos saber.
Pequeno, mas belíssimo trabalho para garimpeiros como eu.
Resenha do Professor Mosh
"Eu fiz da minha ficção realidade! Que pena! E eu juro que se fosse diferente eu já teria as minhas obras completas."
Leituras rasteiras, passeios, compras, vinganças quixotescas e afins
Ontem, na Fnac Pinheiros, antes de adquirir três livros de História do Brasil, dentre eles: Biografia do Brasil e 1808, eu fiz uma varredura pelas estantes da literatura brasileira e literatura estrangeira.
Como adentrei os 55, é notório sentir o calor dos anos; o que me faz recordar Borges em sua cegueira diante de milhares de incunábulos e lombadas.
Li alguns livros na intenção de levá-los; e como tenho um limite para as compras, um tipo de cupom que concedi a mim mesmo; foi-me flagrante a indecisão, antes de optar por aqueles já citados livros.
Folheei Lavoura Arcaica de Raduan e tantos outros; mas, sobretudo, alguns livros de Marcelo Mirisola.
Folheei-os na intenção de levá-los e também no sentido de encontrar a frase, que deu o que falar, da refrega autoral da frase: "Escrevo para me vingar"; que já deu pano para as mangas, envolvendo Marcelino Freire e o próprio Mirisola.
Ao fim e ao cabo, depois de folhear algumas de suas páginas e ler o conto Rio Pantográfico, com o olho de gato, posto que aguardava uma ligação de minha esposa para pegá-la ali mesmo na Vila Madalena, acabei, por mero descuido meu, não encontrando a citada frase, o que vai requerer uma segunda leitura.
Todavia, posso dizer que, no momento, a temática de Mirisola não me tem atraído, sem ser a sua culpa.
Talvez por ter sido um mundo muito próximo de mim, com Luzinetes e afins.
Não vou negar que Mirisola sabe contar, ou através de Missivas a um de seus amigos da Praça Roosvelt, dentre eles Bortolotto ou num conto ou coisa semelhante.
Mirisola não é econômico em atacar um certo Doutor da Unicamp, que suspeito quem seja; cita também uma cidade de Sergipe, que logo intuímos quem seja o outro atacado.
Reinaldo Moraes, Bortolotto e Marcia Denser, provavelmente seus amigos, são poupados.
Notei também a ideia de périplo ou cruzada Mirisolana, quando vai fazendo os seus deslocamentos, principalmente quando vai ao Rio, e faz um ataque a Ed Motta e a certos lugares e demais personagens cariocas, sem citar tantos outros que cruzam pelo seu caminho.
O livro é feito de pequenas vinganças quixotescas, em meio a rolas, picas, gozadas, masturbações, chupadas, e de citações de ruas de Sampa, adentrando também em sua topornografia o interior do país.
Não obstante os livros correrem ligeiros, num primeiro momento não me empolgaram; e isso não significa dizer que não são bons.
É apenas questão de gosto gustibus.
São, sim, muito próximos à minha vidinha de provinciano Vila Reense, tópos por onde passaram alguns possíveis personagens mirisolanos, e , por isso, talvez não encantem.
Posso, por fim, concluir que, embora não tenha encontrado a dita e citada frase, deu para perceber que, aquela frase cuja paternidade Mirisola advoga, de qualquer maneira, em si, consubstancia-se.
É notório e evidente que Mirisola com a sua escrita se vinga; só que nós não podemos supor de quem: se dele mesmo, luzinetes, marcelinos, críticos, da sua própria escrita, dos seus leitores ou quiçá de seu psicanalista que de uma maneira ou outra foi poupado por uma literatura que só o tempo e os leitores poderão nos dizer.
Talvez venha também no futuro um tipo de vingança; uma porque é costumeiro e próprio dos leitores a sempiterna vingança contra certos escritores, que costumam, muitas vezes, masturbarem-se demais em suas vis fantasias; principalmente contra quem não tem nada a ver com aquelas cartases; sobretudo a citada "pretinha" e alguns atletas parolímpicos, que poderiam muito bem ser poupados em seus livros.
Uma porque, Mirisola, os deuses da bile azeda já diziam que: "quem com pica de marimbondo fere; com pica de marimbondo também será ferido!"
Ou melhor, pau que dá em Tonho, deve dar também em Antonio!
Estive lendo uma entrevista de Gerd Bornheim. E eu fico pensando: como tivemos e temos intelectuais bem preparados no Brasil, mas que ficam confinados entre os seus. Bornheim estudou com Piaget, Merlau-Ponty, só não conheceu Heiddeger por injunção própria. Sabia grego, latim, alemão. E pelo que parece era bem bonachão. O mesmo pode-se dizer de Fausto Castilho que traduziu do alemão, que tento a duras penas entender, Ser e Tempo. E nada sobre as suas vidas. Ninguém quase os conhece. Quando digo quase ninguém, digo o povo. Atenas conhecia Sócrates. Mas estamos longe, bem longe, da pólis ateniense. Ao invés de Bornheim, Fausto Castilho, conhecemos mais outros faustos infaustamente.
Missiva do Professor Mosh
Estamos vivenciando um mundo de polaridades.
De um lado, a erosão de paradigmas consagrados por um tipo de ação moral engendrada por uma razão natural ou por legiferações que, não obstante a história procurar perquirir, muitas vezes não sabemos.
Não é mais incomum vermos nas ruas, nas famílias, nas escolas, no trabalho, a pluralidade de gêneros.
Já não é mais o maniqueísmo que impera, ou aquela engessada e dicotômica estrutura masculino x feminino.
Ao mesmo tempo, vemos surgir, do outro lado do polo, um conservadorismo só comparado aos tempos de terríveis pogroms ou escravidão.
Como os polos caminham por sendas distintas, torna-nos possível avistar duas paisagens.
De um lado, a falência do fulcro falocentrista; do outro, a sua ereção nos moldes arcaicos e primitivos, tabulando toda uma moralidade embasada num machismo sem qualquer precedente na história.
Os polos ainda não se tocaram, mas eu quero ver quem será o bombeiro que apagará o incêndio, quando a faísca se der.
O duro vai ser contar o rescaldo e saber do fogo enquanto estávamos distraídos.
O duro vai ser quando o bellum falo quiser a toda força, mais uma vez, beijar-nos.
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