O MONSTRO SISTÊMICO
Texto no prelo.
Sunday, August 06, 2006
De repente dei-me
Conta de que os vermes
Já habitavam o meu corpo
A insônia apoderara-se de mim
As minhas artérias já eram
O habitat natural das alergias
Eu um monstro sistêmico
Morria sem perceber
Já não tinha domínio sobre o meu corpo
Nas madrugadas tempestuosas
O meu corpo ardia
Como sói arder
Um corpo que se encontra
Nas profundezas do inferno
A morte ou a senectute
Apresentava-me a sua credencial
E eu pensava comigo:
Amanhã vai melhorar!
Por que, ó meu Deus, deixamos sempre para amanhã?
Exclamei comigo, enquanto ouvia silvos profundos que
Perfuravam toda madrugada.
Só quem habita a interminável madrugada com as suas
Dores
É que tem a precisa dimensão do infinito
Do prurido da noite.
Na verdade
Um verme é de uma irracionalidade atroz.
Mundana...
Pensei...
O que esses ácaros espasmódicos querem comigo?
Por que não vão procurar outros vermes menos
Abjetos?
Na noite
Eu ponderava os meus dias
Fazia uma retrocessão do tempo
E eu via que a rarefação do tempo
Era mais nítida
Quando encarada de um horizonte a outro
Seria como deslocar o foco de uma luneta
O tempo
Quando se aproxima a morte
É mais fluido e mais diluído
É inversamente proporcional
A um sonho de menino
Que se esparrama na relva
Em busca de um futuro irrealizável
Agora era preciso conviver
Com todas as formas
De impurezas
Qualquer depuração
Seria inócua e inodora
Eu tinha
De uma certa maneira
Que me adaptar
Com as necroses
Da carne e do tempo
A cama nas madrugadas
Não era mais
A minha companheira
Nem o travesseiro
O meu consolo
O mundo tinha os ouvidos moucos
Ao meu apelo
Agora eu sabia de toda a charlatanice da medicina
Os médicos impotentes
Diante da necrose do tempo e da carne
Só se cura o curável
Método pleonástico
De prescrever dietas
A quem já não precisa
Já o incurável
Pertence aos vermes
E à madrugada insone
Afora tudo isso
Também não me apetecia mais
A vã busca da glória
A glória...
Um abismo
Que chama
Outro abismo
Abysmus abysmum invocat
Bela frase de Davi
Que ressoava
Em meus ouvidos
É verdade
Uma desgraça
Nunca vem só
E quando eu recontava
Os meus feitos
Ouvi um escravo
Dizer-me
-Cave ne cadas
A madrugada
Ia assombrando-me
A cada momento em seu labirinto
O tempo
Se invertia
Nos ponteiros
Do relógio lento
O tempo
Não corria
Parecia que a eternidade
Tinha estancado
Em minhas feridas
Anima e corpo
Não se dissociavam
Na dor
Só os relógios
Pontuando
E pontificando
Na algia da noite insone
Todo o meu corpo
Era entrelaçado
Pelos rudimentos
Da madrugada
O pesadelo era tamanho
Jamais esperei uma manhã
Tão desejada de flores
Com seu brilho
O céu
Azul imaculado
(éter- celeste),
O amolador de facas
Assoviando
Pelas avenidas
As mulheres na feira
Com seus filhos
Dependurados
Sobre os seus ombros
O pão quente na padaria
A água fervendo
Ó dias de glória e de infortúnio!
Ó dias que demarcaram a minha felicidade!
Doxa vanus!
Beatitude singular!
A madrugada insone
Colocava-me frente a frente
Com o incurável
Não o vazio
Porque
Entre
O incurável e o vazio
Não há
Similaridade
Antes o vazio pleno
Se se apoderasse de mim
Mas não
Estava eu ali
Entregue às vestes
Do tempo
Impossível suportar
Um corpo que declina
Quando somos tomados
Por outros vermes indigestos
Esquecemos
Até os nossos
Mais feéricos
Inimigos
Toda forma de moralidade
É posta ao chão
Todo desejo de vingança
Toda ausência
Toda calma
Toda ofensa
Toda insignificância
Toda guerra
Toda paz....
Rancores e prudência
Todo fingimento refletido
Toda insolência caracterizada
Todo segredo de importância
Toda euforia ou exaltação
Todo cargo honorífico
Toda honra
Todas as ações boas ou más
Toda melancolia, tristeza...
Nem seduz mais
O passado
Também todo corpo é jogado
Ao chão sem nenhum
Consentimento...
Ó não...
Nem em meus vermes
Eu podia confiar!
Minhas repugnâncias
Não mais tinham objetivo
Meu corpo medíocre
Era o hospedeiro
De uma singular febre de feno
Meu corpo
Detalhadamente
Escolhido
Meu corpo mundano
Que sonhara um dia
Ser cósmico
Com a imensidão
Minha pele sensível
A todos os achaques
Do mundo
Esse meu corpo
Que suportara
As maiores ofensas
Maledicências
Agora
Prostrava-se
E inclinava-se
Às urticárias do mundo
Eu que julgava
Saber tudo
Ouvir tudo
Deduzir tudo...
Por um certo momento
Tentei encará-la de perto
Mas me desaproximei
Tentei em vão
Mostrar-me
De difícil trato
Demonstrar a minha
Não alegria
O meu excessivo
Abatimento
Mas não havia perdão!
Procurei fazer
Um ar inóspito
Carrancudo e vazio...
Soergui os meus olhos e a minha cabeça
Posicionei-me de maneira austera
Circunspecta, altiva...
’O que me espanta é tornar-me teu habitat!’ – proclamei.
‘Isso é de uma irracionalidade atroz’!
Tendo ao fundo
A nona sinfonia como mote
Uma voz estranha me dizia’:
‘AB UNO DISCE OMNES
ACTA EST FABULA’
Virei-me de bruço e
Comigo
Adormeci!
Hodie mihi, cras tibi!
Sic nomizo...
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