PREFÁCIO DE NELSON ROMANO SOBRE O LIVRO OS IMIGRANTES DE CARCABUEY




Foi com muita honra que recebi e aceitei escrever algumas impressões a respeito de
Os Imigrantes de Carcabuey, de Wilson Luques Costa. Primeiro, porque aprecio suas ideias e sua escrita. Acompanho-o desde suas postagens no blogue O Simulacro do Futuro, que depois foi publicado em formato de livro (2017). Também me impressionei com a qualidade de Os Granizos dos Deuses (2002), que traz profundas reflexões de uma ruidosa mente que oscila entre o pensamento filosófico e o esquizofrênico. Em segundo lugar, porque o próprio texto da presente obra me atraiu e agradou. Sugeri-lhe, então, fazer aqui duas pequenas reflexões, uma relacionada ao conteúdo e outra ao estilo, duas esferas da escrita que nesta obra possuem características dignas de menção.

O que qualquer pessoa que o conhecer ou ler seus textos perceberá, nos primeiros momentos, é a inquietação de sua mente. Como se não pudesse conter os próprios pensamentos ávidos, descarrega-os como uma verdadeira avalanche de ideias diversas. É possível ficar horas ou dias a fio, conversando a migrar diversamente entre muitos temas, sobre os quais demonstra grande conhecimento, detendo uma cultura extraordinária. Seu texto não é diferente. Sua composição lembra uma grande tempestade impetuosa de palavras, cheias de significado, lembranças e ideias. Wilson é um escritor interessante porque é interessado. As ideias lhe interessam.

Agradeço ao autor por ter me submetido o texto ainda antes da publicação ou de uma revisão mais acurada, concebido sem filtros ou adornos. E, além disso, por me consultar a opinião sobre o mesmo sendo isto, para mim, uma grande lisonja.


Do conteúdo


Ao longo do tempo, e cada vez mais, tenho a impressão de que a perspectiva de valor para o ser humano tem seus parâmetros volúveis. Valor, para muitos, pode ser o saldo da própria conta ou o quanto custa o que podem comprar. O sucesso está, muitas vezes, ligado às conquistas patrimoniais e financeiras. Vemos sempre por aí, mundo afora, convites para o sucesso, lições para se alcançar os objetivos, os sonhos e até mesmo a própria felicidade, como se esta fosse passível de ser enfrascada, rotulada e exposta em uma loja para ser comprada.

Para muitos outros, o valor está em apoderar-se da ideologia mais justa para todo o mundo. Transformar a sociedade com as próprias mãos e ideias, convertendo-a em um ambiente melhor e com mais equidade, mesmo que isso implique em ser violento o bastante para calar a voz que proponha uma ideia mais diversificada. Aqui o valor é ter razão, saber mais do que o outro, é se tornar o dono da verdade a respeito do que é bom ou mau para todos os seres humanos.

Sim, percebo vários tipos de parâmetro de valor que muitos vivem a aplicar à vida, mas penso que quase todos possuem, em si mesmos, uma pitada de ambição, ganância ou falso heroísmo. A maioria os tipos de valor são, ainda, pensados para o futuro. “Lá, quando o mundo for bom...”, “quando tudo melhorar, graças aos grandes ideais...”, “depois, quando vencer a verdade...”, “depois que evoluírem os princípios...”, sempre depois, nunca agora. Nunca antes. É como se no agora não existisse nada de bom para se aproveitar, como se no passado não houvesse importância alguma.

Foi com estes olhos que li e leio a obra de Wilson Luques Costa. Alguém que superou o senso comum, dando uma ressignificação para o que pode ser valioso de verdade. E não o buscou nos tesouros materiais, na promessa de felicidade fácil, tampouco lhe ocorreu que estivesse num futuro distante, conquistado às duras penas por um esforço do presente. Mas achou-o no passado. Achou-o nas vozes que ecoam em sua cabeça, as quais o tempo não pôde silenciar. Buscou-o nas imagens, reveladas em uma ou outra fotografia antiga, mas principalmente naquelas impressas no âmago de seu espírito sensível. Numa palavra da avó, numa conversa com o pai... numa fala da mãe, nas brincadeiras com os colegas da rua... nas peladas de futebol, no bairro, na casa... no passado. O passado que é a sua vida, que moldou o seu presente e estará presente também no seu futuro. Passado que repassa para a família que construiu, para seus filhos e, através do poder de sua escrita, para os seus leitores.

Esta é a mais nobre e a menos ambiciosa de todas as percepções de valor que pode chegar através de um texto escrito o que, por si só, já é uma grande qualidade literária. Sem avidez, sem utopia, sem os afãs da conquista do sucesso e sem prometer uma panaceia infalível para a perfeição da convivência entre os homens, Os Imigrantes de Carcabuey usa uma linguagem humilde, vinda do coração e da memória. Sem pedantismo, sem verbosidade exibicionista. Um texto nu, que ecoa a verdade e busca, ilimitadamente, a honestidade dos fatos e do estilo.

O autor quer falar das coisas simples, quer falar da sua família, das suas raízes, dos remotos tempos que deram origem aos Luques e ao próprio Wilson. O autor quer reconstruir os fragmentos de memória e os registrar. O registro é tudo o que importa. A preocupação literária nesta obra é impedir que a escuridão do esquecimento se apodere de sua própria história e a rapte da capacidade de recordação. Ele quer permitir que suas reminiscências sejam transferidas de sua mente para a dos seus leitores e para o papel, que é um gravador atemporal das declarações e das documentações e também a testemunha mais fiel de todos os homens de grande ciência e dos mestres da arte.


Do estilo


O livro é como uma película, um filme com imagens impressas, e lê-lo é rodá-lo, vê-lo em movimento. Tudo se movimenta, como cenas, ainda que não haja diálogos marcantes. Algumas das cenas são conexas, outras desconexas. O texto funciona como a memória, armazenada em vários pontos e recuperada aleatoriamente, como em um sonho ou em uma profunda reflexão sobre o passado, sobre a vida pregressa. É a edição branda de fragmentos justapostos, vindos das entranhas da mente. É possível reviver, com o autor, certas experiências que não foram as nossas.

Como um paradoxo, o texto se exprime menos por palavras do que por imagens. A palavra escrita serve como instrumento para reconstruir figuras ou mesmo fotos. Assemelho-o a um belo álbum de fotografias antigas, nas quais se vê pessoas e cenários, dentro de um espaço-tempo restrito. Estes se repetem, se vinculam e desvinculam, mas, como em um álbum, a ordem cronológica e as ligações de eventos nem sempre são claras e talvez nem precisam ser. Em muitos pontos é possível ler randomicamente os trechos, sem compromisso algum com a linearidade.

Quanto à estrutura e estilo, o texto me parece eclético e miscelâneo. Trata-se de uma sucessão de breves textos, que vão de narrações em prosa, descrições, alguns versos de caráter poético, passando pelo conto e até por uma livre associação verbal. O significado vale mais do que a estética e a capacidade de imaginação é um melhor requisito para a leitura do que o gosto pelas formas mais bem-acabadas.

Wilson faz ainda um exercício de historiografia. A descrição da origem dos Luques, desde a Espanha, até a vida na Zona Leste de São Paulo, no limiar da Vila Ré, bairro do qual relata brevemente o início, são interessantes depoimentos a respeito de como sucedeu o surgimento da localidade através do seu ponto de vista de habitante juvenil. É possível contemplar o comércio, a igreja, algumas casas e um fragmento da sociedade local, dentro do seu círculo próximo.

A maior beleza do livro é construída em tempo de leitura, no rodar do filme, na experiência de sua execução, mais do que nesta ou naquela técnica formal. Os Imigrantes de Carcabuey é um convite à vida que passou, um convite à memória e à saudade.


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