A cidade e o viajante inglês
ANOTAÇÕES DE VIAGEM
As ruas da cidade eram movimentadas.
O trânsito era intenso.
No centro da cidade havia muitas lojas e comércio de todos os tipos de mercadorias.
As pessoas andavam com sacolas e faziam compras de todo tipo de bugigangas.
As ruas eram sujas.
As pessoas eram mal educadas e sem ética.
Havia cascas de bananas, laranjas, mexericas, jacas e outros tipos de frutas jogadas nas ruas.
Os lixos eram jogados nos rios.
Pedintes abriam os lixos e comiam restos de comidas misturados com fezes de cachorros e gatos.
Havia lixeiras afixadas nos postes mas estavam destruídas pelas mãos dos bárbaros que circulavam pelas ruas de madrugada.
Os vendedores eram mal educados e ficavam nas portas das lojas assediando os possíveis compradores.
Havia muitos homens drogados deitados nas ruas, esquinas e praças ou andando com seus sacos sobre os ombros como zumbis.
Eles usavam uma droga chamada crack que os incapacitava para o estudo, trabalho ou qualquer tipo de vida social.
A maioria dos jovens era viciada em maconha e outros tipos de drogas.
As famílias eram desestruturadas.
Os filhos não obedeciam seus pais.
O trânsito nessa grande cidade além de intenso era infernal.
Havia veículos de todos tipos e modelos.
Muitos proprietários de veículos não possuíam casa própria e viviam de aluguel.
Os cidadãos estavam endividados com bancos e financeiras pelo consumo excessivo.
Era uma sociedade consumista.
Possuir determinados bens dava status.
Naquela cidade, havia muitos assaltos e roubos seguidos de latrocínios.
As pessoas eram sequestradas nas ruas e se tornavam reféns dos assaltantes.
Era uma cidade muito perigosa.
As pessoas se agrediam e se matavam por um aparelho chamado celular.
Havia roubos de casa, de veículos, motocicletas, botijão de gás, joias, cartões de crédito etc.
Os pais desses ladrões eram drogados, alcoólatras e ladrões na maioria das vezes.
Havia muita traição, separação e divórcio.
Os homens e mulheres se corrompiam facilmente.
As pessoas amavam um tipo de esporte que se jogava com os pés chamado futebol.
Havia torcedores apaixonados que se agrupavam naquilo que chamavam de torcida organizada.
Aquelas suas torcidas torciam pelos seus times levando bandeiras e fogos de artifício para os estádios.
Era comum as torcidas se digladiarem nas ruas e nas imediações dos estádios e nos meios de transportes como metrô, ônibus etc.
A maioria dessas pessoas eram trogloditas apaixonados pelos seus clubes.
Os diretores desses clubes faziam contratos milionários e enriqueciam ilicitamente com sonegação de impostos e lavagem de dinheiro em ilhas chamadas paradisíacas.
Os atletas e a imprensa eram coniventes com esses roubos.
Era também bastante comum as pessoas frequentarem bares e beberem um tipo de malte chamado cerveja.
A cerveja era uma bebida com um menor teor alcoólico que a pinga.
Mas muitos se embriagavam nos finais de semana e mesmo no decorrer da semana.
A cerveja funcionava como uma carta de alforria dos dias de exploração das senzalas verticais.
Havia pessoas que acordavam às quatro da manhã e só retornavam depois de um trânsito infernal lá pelas oito ou dez horas da noite.
Essas pessoas trabalhavam em várias profissões como: metalúrgicos, marceneiros, açougueiros, funileiros, padeiros, empregadas domésticas, diaristas, copeiros, pintores de automóveis etc.
Por conta da estratificação social, havia também profissões de escritórios como: advogados, contadores, escriturários, notistas, engenheiros, bancários, escriturários etc.
Todos ou quase todos viam na cerveja uma carta de alforria.
Isso podia representar um tipo de escravidão ou verdadeiros presídios onde a maioria trocava a sua liberdade por uma ilusão de ser livre um dia, enquanto se mantinham nessas senzalas verticais aprisionada.
Havia também vícios na pinga, whisky e outros destilados.
Tratava-se de uma sociedade ébria que era escrava de seus próprios desejos.
Muitos eram escravos de suas condições sociais e lutavam para ter uma mobilidade social.
Mas essa mobilidade era ilusória.
A mobilidade se dava principalmente pelo esforço nos estudos.
E isso nem sempre acontecia.
A educação era péssima e desinteressante.
Era uma sociedade hedonista que não colocava o estudo como algo prioritário.
Depois das esbórnias do final de semana, as pessoas na segunda-feira retornavam para os seus trabalhos.
A maioria com ressaca e um mal humor jamais visto.
Era nesse dia, segunda-feira, quando todos voltavam às suas senzalas pós-modernas, que a violência voltava a imperar seja nos coletivos abarrotados de trabalhadores das chamadas classes médias e pobres ou mesmo naqueles que possuíam os seus veículos pagos em inúmeras prestações.
No trânsito de automóveis, havia xingamentos, estresse, buzinas, brigas entre motoristas, saques de armas e brigas em plenas avenidas gerando assassinatos, roubos, furtos etc.
Muitos carros eram blindados no escopo de evitar sequestros, assaltos ou uma bala perdida.
Na verdade, tratava-se de uma guerra disfarçada de paz.
Os cidadãos não percebiam que estavam no redemoinho de uma vida caótica.
Esses cidadãos eram consumidores compulsivos.
Endividavam-se para adquirir carros, motocicletas, bicicletas, roupas da moda que nem chegavam a usar.
Havia residências com dois ou três carros quase todos com busca de apreensão e dívidas infinitas.
Era uma sociedade que via no prazer do corpo e nos bens materiais um antídoto contra as moléstias da exploração que nem ela mesmo conseguia perceber.
Havia muito preconceito na cidade contra afrodescendentes e pessoas que vieram de uma região que ficava no nordeste do país daquela cidade.
Os afrodescendentes sofriam esses preconceitos desde o tempo da escravidão.
Embora fosse mais fácil o acesso à escola e a serviços destinados aos brancos.
Mas mesmo assim havia aquilo que chamavam de racismo estrutural.
Tratava-se de uma sociedade machista e preconceituosa.
Não era incomum vermos uma confraternização entre afrodescendentes e brancos.
Todavia isso se dava somente na aparência das relações sociais da cidade.
Havia aquilo que chamavam de hipocrisia racial.
Os ataques a negros eram constantes.
Os ataques podiam se dividir em ofensas verbais como ofensas físicas.
As pessoas costumavam frequentar feiras onde compravam toda espécie de frutas e verduras.
As feiras costumavam vender uma espécie de massa frita recheada com queijo, carne, escarola que denominavam pastel.
O pastel era sempre acompanhado de garapa que fazia lembrar o tempo dos engenhos e da escravidão naquele país.
Pessoas circulavam com as suas sacolas num movimento entre encontros, tropeços e tropelias.
Havia brincadeiras insinuativas dos feirantes com as donas de casa sempre com um sentido jocoso e sexual.
Os feirantes faziam piadas com as mulheres casadas no intuito de obterem uma recíproca de uma dona de casa descontente com o marido.
Muitas demonstravam gostar daquele assédio.
Outras mulheres demonstravam mais austeridade e irritação e isso denotava uma sisudez que inibia aqueles galanteadores.
Os assaltos que eram uma constante na cidade tinham o beneficio do avanço tecnológico.
Havia muitos assaltos com revólveres, mas os grandes assaltos eram cometidos contra bancos, supermercados, empresas, residências e pedestres.
Havia programas televisivos que retratavam muitas vezes ao vivo esses crimes.
Esses programas policiais tinham uma audiência muito grande, sobretudo no período da tarde onde esses assaltos mais aconteciam.
Muitos ladrões, incluindo-se principalmente políticos, andavam à solta pela cidade.
Era uma cidade onde medrava a impunidade e o medo.
Os habitantes daquela cidade costumavam também frequentar padarias para tomar café puro ou com leite logo pela manhã.
Esse era um dos prazeres daquele povo.
Era costumeiro tomar café com leite e pão com manteiga.
Nos dias de semana e principalmente nos finais de semana vi muitos bares e padarias lotados de fregueses ansiosos e em filas para fazerem o matinal desjejum antes da faina que só ia terminar no início da noite.
Quando chegavam em casa no início da noite assistiam às novelas ou ao futebol em família.
Assistiam também a séries e outras plataformas digitais.
Vi famílias inteiras reunidas sem trocarem uma única palavra.
Todos estavam absortos em seus celulares vendo futebol, séries, podcasts, novelas, noticiários etc.
Muitas mulheres tinham dupla e até tripla jornada.
Mal chegavam de seus serviços cansadas, tratavam logo de fazer comida, lavar e enxugar as louças onde todos da família antes se refestelavam.
Muitas nem dormiam um sono apaziguador.
Dormiam se muito quatro ou cinco horas por noite.
No outro dia, esgotadas, pegavam ônibus lotados com passageiros irritados pelas mesmas condições que as suas para no final do mês receberem um estipêndio que acabava logo na primeira semana.
Vi também muitas dessas mulheres sofrerem violência doméstica.
Apanhavam dos maridos por qualquer motivo reles, seja por ciúme ou porque não tinha mistura ou mesmo porque o marido como sempre estava alcoolizado ou sob efeitos de drogas como maconha, cocaína ou crack.
Na cidade além do trânsito infernal pela manhã e pelo final de tarde com peruas, carros, motos e ônibus lotados, havia também se pode dizer uma multidão de usuários das linhas de metrô.
Nos vagões e trens do metrô, presenciei pedintes, vendedores de canetas, barbeadores, pilhas.
Presenciei cantores de música gospel, declamadores de poemas, atores mambembes, sacoleiros, mágicos etc.
Tudo isso numa algaravia de vozes e entretenimento com celulares e muitos falantes.
As pessoas conversavam com familiares sobre dívidas, doenças, mortes, projetos, política, novelas, séries, futebol, doenças, brigas e tantos outros assuntos.
Se nos distraíssemos, éramos, sem perceber, furtados, assaltados ou açambarcados pelos ladrões dos metrôs da própria cidade.
Vi muitos turistas andando com celulares fotografando as pessoas e os prédios da cidade.
Vi muitos motociclistas na cidade que trabalhavam como motoboys.
Muitos desses motoboys eram jovens e já eram pais de família.
Corriam como loucos no escopo de manter o sustento próprio e o sustento da família.
A maioria não possuía vínculo empregatício nem planos de saúde.
Eram uma espécie de lumpemproletários que se iludiam com a circulação fácil do dinheiro pelas suas pochetes que dava uma falsa impressão de riqueza.
Mas esse dinheiro era como um rio heraclitiano que desaguaria na foz de uma ilusão de serem empreendedores e empresários endividados com bancos, financeiras e agiotas por conta dessa mesma ilusão.
Vi muitos desses motoboys abandonarem os estudos antes mesmo de terminarem o ensino fundamental ou mesmo o ensino médio para trabalharem pelo autossustento.
A evasão escolar era das maiores do mundo.
A escola não atraía os alunos com a sua obsoleta prática pedagógica.
Pelo que observei, tratava-se de um simulacro educativo com alunos e professores totalmente abandonados pela desídia de seus governantes.
Jovens costumavam frequentar um tipo de baile onde se tocava muito funk e rap que chamavam de fluxo.
Eram centenas, milhares de jovens que frequentavam esses fluxos, fechando praças, viadutos e comunidades.
Presenciei muita alegria, dança, bebida e todo tipo de droga em excesso.
As jovens usavam cropped e dançavam uma dança bastante erótica fazendo lembrar os lundus do século XIX.
Os jovens além de fumarem maconha, costumavam baforar lança-perfume fazendo reviver um tempo quando o lança-perfume era liberado e fazia parte de uma prática carnavalesca de salões e ruas do início do século XX.
Muitos jovens faleciam por conta do excesso desse hedonismo e por conta também daquela mistura de bebidas, lança-perfume e todo tipo de drogas incluindo além da maconha, cocaína, pod e crack.
Vi e frequentei muitos sebos e livrarias naquela cidade.
Muitas livrarias encontravam-se com as portas fechadas devido à crise fomentada pelas plataformas digitais.
Frequentei também muitas bibliotecas públicas.
Havia leitores, mas o índice de leitores de livros vinha caindo vertiginosamente.
Havia muito descaso dos governos bem como dos funcionários que pareciam detestar livros e leitores.
Isso de uma certa forma afastava o pretendente leitor dos livros.
Os atendimentos eram na maioria das vezes péssimos.
Tive a impressão que os funcionários estavam ali para ter os seus salários garantidos ao final do mês.
Presenciei um total descaso com a cultura, sobretudo com escritores e poetas.
A população os via como pedintes e penduricalhos do Estado.
A população dava mais valor à economia do setor financeiro e indústrial.
A cultura era vista como algo menor, como um passatempo ou hobby, tanto para a população como para os prefeitos, governadores e governantes de um modo geral.
Os governantes daquela cidade eram corruptos.
Existia a câmara municipal que era tão corrupta quanto os seus governantes.
Esses governantes legislavam em causa própria, deixando a população à mercê das vicissitudes econômicas.
Os vereadores eram despreparados intelectualmente.
A população também era despreparada intelectualmente por conta do abandono escolar.
Era uma sociedade alienada que não pensava na alteridade.
Era raro vermos no metrô, ônibus e peruas pessoas lendo qualquer espécie de livro.
Os poucos leitores que vi, liam livros de entretenimento que os tornariam ainda mais alienados.
Vi muitos moradores de rua.
Esses moradores de rua bebiam um tipo de cachaça chamada barrigudinha.
A maioria não possuía os dentes frontais.
Andavam com cobertores lembrando Diógenes.
Dentre esses moradores conheci médicos, jornalistas, advogados, universitários, dentistas, professores etc.
Dormiam em caixas de papelão, debaixo de marquises, esgotos, praças, ao relento ao lado de bibliotecas etc.
O custo de vida da cidade era comparado aos das maiores cidades do mundo.
Muitos moradores da periferia iam poucas vezes às outras periferias ou mesmo para o centro da cidade.
A maioria dos bairros possuíam escolas, universidades, lojas, cursos de línguas, agências de automóveis, padarias, mercados e hipermercados.
Muitos bairros possuíam uma população acima de cinquenta mil habitantes, o que tornava esses bairros pequenas cidades encravadas dentro de outras cidades, reproduzindo os mesmos benefícios e também os mesmos problemas das maiores cidades.
Aquela cidade, além de linhas de ônibus, metrô, peruas, possuía uma nova modalidade de transporte particular chamada uber.
Os habitantes daquela cidade faziam uso desse tipo de transporte particular para pequenas distâncias.
Pelo que noticiavam os jornais, no início desse tipo de transporte, ocorriam muitos assaltos e crimes atentando contra os motoristas daquele meio de transporte.
Estimava-se à época que naquela cidade havia cerca de 20 milhões de habitantes.
Havia muitos centros financeiros com seguradoras, bancos, financeiras e bolsas de valores.
Ocorria uma circulação incessante de transeuntes frequentando shoppings, cafés e lojas.
Além de assaltos já citados, tinha muita criminalidade passional, seja por ciúme, intrigas entre vizinhos, disputas narcísicas pelas plataformas digitais como Tiktok, Facebook, Twitter, Instagram etc.
Ocorriam também muitos golpes nas redes sociais.
Não obstante, a violência, a criminalidade, a falta de ética e de solidariedade, presenciei um forte sentimento de fé naquela cidade.
A maior parte dos habitantes seguia como religião o catolicismo.
Havia um grande crescimento de igrejas neopentecostais.
Presenciei principalmente aos sábados as igrejas lotadas com cantos, gritos e choros de louvores a Deus.
As pessoas pareciam possuídas por um daímon que não se identificaria com a tão propalada paz de Deus.
Naqueles gritos, cantos, choros, preces de louvores, os crentes pediam automóveis, sítios, fazendas, e todo tipo de bens materiais.
Vi fiéis ajoelhados pedindo a Deus sorte no amor e principalmente no jogo.
Esse era o lídimo exemplo de que o corpo vinha sobrepujando a alma daqueles fiéis.
Logo pela manhã, antes do alvorescer, quando muitos se dirigiam para as suas senzalas verticais, vi muitos adolescentes e adultos nas esquinas das periferias totalmente alcoolizados por toda espécie de bebida alcoólica.
As preferidas eram uma mistura de vodka com limão e essências de todos os sabores denominadas coiote.
Vi muitos adolescentes deitados nas ruas ou se apoiando quando tentavam caminhar nos ombros dos outros que também estavam sob o efeito daquela maldita bebida.
Misturados a eles, os trabalhadores caminhavam para os seus trabalhos.
A maioria desses trabalhadores percebia se muito salários iguais ou um pouco acima do salário mínimo instituído naquela cidade.
Quanto mais alvorescia na cidade, os bêbados e abandonados se misturavam a outros transeuntes.
As feiras iam se instalando também na cidade.
As portas dos comércios iam se abrindo com tímidos consumidores.
Aos poucos, a cidade era tomada por uma imensidão de veículos.
A cidade parecia para um viajante turista como eu, se olhada de longe, um verdadeiro formigueiro.
Assim a cidade ia funcionando como um sistema autômato com seus achaques, crimes, ódio, inveja, solidariedade, fé, amor e solidão.
Uma coisa que me chamou muita atenção, quando eu caminhava nos sábados pelas periferias daquela cidade, foi ver as famílias (pai, mãe e filhos) com roupas bem alinhadas.
As mulheres trajavam saias abaixo dos joelhos e uma blusa ou tailleur e os homens paletós e gravatas.
Homens e mulheres, marido e mulher, dirigindo-se para as missas que iniciavam logo após o romper da tarde e o início da noite.
Foi de fato uma coisa bela de se ver e que até hoje não sai da minha memória.
Vi também muitas festas de aniversários em salões alugados e nas casas dos aniversariantes.
Nos salões havia um cerimonial que não ocorria com tanta frequência nas casas.
As festas nos salões costumeiramente encerravam por volta das duas da manhã.
Nas casas já era comum as festas se estenderem até seis ou sete horas amanhã do outro dia.
Era mais corriqueiro e tradicional essas festas ocorrerem aos sábados.
Havia também com menor regularidade essas festas no meio da semana; mas isso era menos corriqueiro.
Visitei naquela cidade muitos supermercados.
Nos supermercados, comprei leite integral, desnatado, semidesnatado, papel higiênico, iogurtes, doces de todos os tipos, chocolates, pizzas, queijos, presuntos, arroz, feijão, cereais, carne etc.
Nos finais de semana, sobretudo nos sábados, às filas nos supermercados eram imensas.
Essas compras nos supermercados se constituíam em verdadeiros prazeres familiares.
As crianças subiam nos carrinhos com os alimentos e os carrinhos eram empurrados pelos pais, tios, irmãos ou primos.
Tudo isso denotava um momento de felicidade entre a família que assim que chegava em casa refestelava-se com lanches, sanduíches, pizzas, e esfihas compradas naqueles supermercados.
Pude perceber andando tanto pela cidade como pela periferia que a maioria das ruas eram asfaltadas.
Nem sempre os asfaltos eram de boa qualidade.
Em determinadas épocas, havia verdadeiros buracos ou crateras nas avenidas que se tornavam um perigo tanto para os veículos como para os transeuntes que por elas passavam.
Em determinadas épocas, percebi que muitas ruas pareciam um tapete.
Isso já denotava a aproximação das eleições.
Era costumeiro os governantes se preocuparem com a cidade em épocas próximas dos escrutínios.
Vi muitos velórios naquela cidade.
Os velórios eram realizados por empresas privadas.
Essas empresas faziam o trabalho de sepultamento e cremação.
Não existia nenhum respeito pela dor dos enlutados.
Vi cobrarem de 4 a 10 salários mínimos pelos sepultamentos das pessoas pesaradas pela dor.
As pessoas enredadas pela emoção da dor cediam às propostas daqueles verdadeiros ladrões do comércio da morte.
Além da dor do falecido, adviriam outras dores dos endividamentos ocorridos por conta da escroqueria da morte.
Era costumeiro também encontrar todo tipo de comércio de rua.
Vendia-se churrasco no espeto, hambúrgueres com queijo, cerveja e inúmeros destilados.
As pessoas ficavam confabulando sobre todo tipo de assunto.
Tudo era motivo para consumir de modo superlativo todo tipo de bebida acompanhado do que eles chamavam de espetinho de carne ou de queijo.
As ruas além da poluição, ficavam esfumaçadas e com cheiro de carvão.
Vi pessoas caminhando pelas calçadas esburacadas.
Alguns caminhavam solitários provavelmente pensando na vida.
Observei também muitos casais caminhando por ruas mal iluminadas.
Vi casais jovens e vi casais de idosos.
Os jovens caminhavam nos dias de calor com sorvetes nas mãos.
Faziam dos sorvetes o liame da paixão e do amor que nasciam.
Quanto aos idosos, vi muitos casais que se dirigiam às farmácias e às igrejas ou mesmo para alguma lanchonete ou padaria.
Muitos idosos também vi caminhando e conversando pelas praças.
Caminhavam lentamente de mãos dadas ou abraçados.
Caminhavam desviando dos buracos das calçadas a fim de evitarem as tão corriqueiras letais quedas.
Anoto aqui em minha agenda que presenciei muitos saraus de música e poesia.
Esses saraus muitas vezes atravessavam as madrugadas.
Os poetas e músicos surgiam do nada nas noites como surgiam as estrelas no céu.
Frequentei com muita assiduidade esses encontros com músicos e poetas.
Vi grandes poetas subirem no púlpito a fim de lerem seus belíssimos poemas.
Vi grandes músicos tocando e interpretando as suas canções.
Vi a estratificação social na arte.
Vi profissionais da arte.
Fui também ao teatro.
Assisti a inúmeras peças teatrais.
Assisti ao teatro profissional e ao teatro chamado popular.
Quando estive naquela cidade, fui também ao cinema.
Assisti a filmes de todos os tipos.
Fui ao circo e vi crianças pobres e enjeitadas pelas famílias felizes.
Vi também na cidade muitas manifestações de greve.
Os trabalhadores solicitavam melhores condições de salários e de vida.
As greves eram organizadas por sindicatos.
Alguns sindicatos tinham a alcunha de pelegos e faziam greve mais no sentido de favorecer as demandas dos patrões.
Os trabalhadores eram traídos pelos seus próprios líderes que recebiam benesses de seus patrões.
Recebiam também benesses de suas posições de poder.
Muitos usavam o dinheiro dos sindicalistas para locupletarem-se.
Mas vi também sindicatos muito organizados que lutavam pelos trabalhadores.
Vi uma sociedade alienada e desinteressada pela política.
No ano que estive naquela cidade presenciei uma das maiores epidemias que quase dizimou toda a humanidade.
Um vírus letal ceifou vidas e vidas.
As pessoas foram proibidas de andar pelas ruas sem máscara.
Houve dias e dias de confinamento em casa.
Os cemitérios não davam conta dos enterros.
As cerimônias foram canceladas.
Os hospitais abarrotados com milhares de mortos empilhados.
A população morria a cada hora, minuto e segundo.
Médicos e enfermeiros morriam.
A cidade virou um caos.
Alguns governantes ironizavam da letalidade do vírus colocando a população em perigo.
Outros governantes paralisaram a cidade.
A cidade parecia um deserto com mortos caídos nos corredores, nas ruas, calçadas e esquinas.
Houve um esforço para debelar aquela doença infernal.
Houve demora na descoberta de vacinas eficazes.
A população vivia aflita e confinada em suas casas.
Lavava-se as mãos com álcool gel, álcool e outros produtos.
Parecia que o inferno definitivamente instalara-se na terra e na própria cidade.
Era uma cidade que estava em construção e desconstrução.
Vi arranha-céus surgindo do nada.
Casas que tinha observado dias antes já não existiam mais.
No lugar delas, grandes prédios e edifícios resididenciais e comerciais iam sendo construídos.
A memória arquitetônica da cidade ia se apagando ou ficando somente registrada nos álbuns de fotografias.
Sobretudo na periferia da cidade, as casas iam se amontoando pela volição dos próprios moradores auxiliados por parentes, amigos e vizinhos.
As casas eram construídas sem planejamento algum.
Não era raro observar caminhões caindo aos pedaços transportando tijolos, blocos, pias e todo tipo de material de construção.
Não era raro também observarmos esses caminhões sem nenhuma revisão quebrados no meio das ruas e avenidas e atrapalhando o já infernal trânsito.
Quantas vezes não vi portas, tijolos, pias, arames no meio das ruas e avenidas.
Quando estive naquela cidade, assisti a uma cerimônia budista.
No local da cerimônia, havia uma oratório com um pergaminho que os budistas chamavam de gohonzon.
Havia também alguns adornos como velas, incensos e flores.
Ouvi um mantra que as pessoas recitavam em uníssono.
Além desse local de cerimônia, havia os locais de residência dos budistas que cediam as suas casas para as cerimônias.
As cerimônias eram feitas nos finais de semana e nos dias da semana.
Nos finais de semana, as reuniões eram realizadas no período da tarde e início da noite.
Nos dias úteis da semana, as cerimônias o ocorriam no período da noite, iniciando por volta das 19h00.
Vi muitos estudantes num indo e vindo pela cidade.
Muitos estudantes levavam mochilas nas costas.
A maioria andava em grupo de jovens da mesma idade.
Vi também muitos namorados.
Cheguei a visitar algumas escolas públicas e presenciei algumas aulas.
As salas estavam abarrotadas.
Muitas vezes não havia cadeiras.
Em certos dias, havia muita ausência e abandono por inúmeros motivos.
Presenciei muita indisciplina nas salas de aula.
Alunos não respeitavam os professores e não se interessavam sobre as aulas.
Havia raríssimas exceções.
Posso dizer que era outro inferno na terra.
Alunos agrediam oral e fisicamente professores e os funcionários da escola e não eram punidos.
Professores pediam sucessivos afastamentos por problemas psicológicos.
Havia muitas aulas vagas.
Muitos alunos abandonavam os estudos para serem arrimos de família.
A maioria ia trabalhar em lojas, fábricas e no comércio em geral.
Eram empregos com péssimas remunerações.
Outros abandonavam os estudos para trabalharem no tráfico de drogas.
Era uma cidade tropical com um clima ameno.
No inverno senti um pouco de frio, menos que Londres.
No verão, o calor era insuportável.
Pernilongos não me deixavam dormir direito.
Presenciei muitos pacientes com febre amarela, dengue, pneumonia, bronquite etc.
No calor os homens andavam sem camisa pelas ruas.
Vi muitos motoristas dirigindo de chinelo e sem camisa.
Nas noites de verão, a população ficava nas calçadas mesmo correndo o perigo de serem assaltadas.
Vi famílias inteiras confabulando nas calçadas, ouvindo músicas, dançando, pulando e se divertindo.
Vi muitos casamentos, sobretudo aos sábados.
Vi noivas com seus lindos vestidos brancos adentrando as igrejas.
Vi noivos e padrinhos com seus alinhados paletós.
Aos domingos muitas famílias ficavam reunidas assistindo aos programas de auditório.
Eram longos programas dominicais com variados quadros.
Havia shows de calouros, onde aspirantes a cantores se apresentavam.
Muitos programas eram sérios e davam oportunidades aos aspirantes.
Outros programas tinham um aspecto mais humorístico e descontraído.
Havia também shows de danças e outros inúmeros quadros.
Assim as famílias passavam os seus domingos num espreguiçar de entretenimento para aliviar as dores da alma com a chegada da segunda-feira que seria como as outras tediosa e quase interminável.
Pude estar durante uma semana na casa de uma família daquela cidade e conhecer a sua rotina diária.
A família era composta de quatro membros: pai, mãe, filha e filho.
O pai costumeiramente acordava às cinco da manhã.
Acordava antes do gorjeio matinal dos pássaros.
Logo que acordava, ligava o televisor no jornal matinal mais popular da cidade.
Pelo jornal da cidade, o pai logo ficava sabendo sobre as notícias mais importantes daquela manhã.
O pai deixava o televisor ligado e a água esquentando, enquanto a mulher e os filhos dormiam, e ia até o mercado comprar pão, manteiga, mortadela ou muçarela.
Assim que retornava, a água já havia fervido para o café.
Ele pegava o coador e colocava três colheres de chá bem cheias do pó de café.
Sobre o pó de café derramava aquela água fervente.
O odor que exalava daquele café impregnava a cozinha, os quartos e a casa toda.
O odor daquele café matinal fazia-me lembrar de Marcel Proust, quando li sobre os biscoitos de Madeleine.
Com o odor do café, toda a família ia acordando aos poucos.
Primeiro, o odor do café acordava a mãe, logo em seguida o filho primogênito e por último a filha.
Tudo isso acontecia de segunda à sexta-feira.
Nos sábados e domingos, a rotina se modificava um pouco.
Ao mesmo tempo que faziam o desjejum matinal, conversavam sobre contas a pagar, dívidas, projetos, problemas no trabalho e comentavam sobre alguma notícia mais aterradora ou do próprio interesse da família.
Na medida, que iam fazendo o desjejum, os noticiários da TV iam ficando para trás.
A imagem do apresentador na tela e a sua voz serviam apenas como um paramento para a cozinha.
Serviam apenas de companhia para aquela família que aos poucos ia acordando e ouvindo o andar dos pedestres, o motor barulhento das motocicletas, caminhões e veículos anunciando que também a cidade acordara de vez.
Era o momento de sair para o trabalho.
Primeiro saía a mãe que se despedia dos filhos e do marido.
Em seguida, saía o pai que levava de carona o filho para o trabalho.
Por último, saía a filha adolescente que ia caminhando com as amigas até a escola.
A casa ficava vazia e em silêncio.
A TV desligada e a louça suja empilhada na pia eram o prenúncio de uma casa solitária e desabitada.
Era como se o mundo tivesse sofrido uma hecatombe.
Restava o latido solitário do cachorro e a beleza das flores no jardim.
Frequentei outras famílias e notei o mesmo modus vivendi das demais, com a TV ligada em algum jornal, com o desjejum feito com frutas tropicais, com conversas e brigas logo pela manhã entre pais, irmãos e agregados.
Foi muito raro ver alguém folheando algum livro.
Certa feita, pude ver uma família comentando sobre livros.
Isso me causou uma curiosidade imensa.
Era uma família na qual todos cultuavam a prática e o diálogo sobre leituras.
Mas isso foi de tantas famílias que visitei uma exceção e raridade.
Se na Idade Média podíamos identificar o espírito religioso da população pela pletora de igrejas e símbolos religiosos como a cruz sobre os pináculo das torres, naquela cidade pelas pletoras de antenas podíamos identificar uma população contornada, cerceada e vigiada pela comunicação.
Pude perceber visitando aquela cidade que a comunicação era inversamente proporcional à quantidade de seus dispositivos de comunicação.
Pude concluir que quanto mais havia dispositivos de comunicação, menor era o poder de entendimento e comunicação.
Relembrando tudo aquilo que observei em minha viagem pude concluir que aquela cidade poderia ser a verdadeira torre de babel se eu a observasse sob o meu olhar arguto de um fanático religioso.
FIM
Excelente.
ResponderExcluirMuito obrigado, querido! A sua opinião é muito valiosa e um estímulo para mim.
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