PAIDÉIA

Se fizermos uma pesquisa nos dicionários brasileiros sobre o vocábulo grego Paidéia, veremos que teremos dificuldade em encontrar o seu registro. Todavia, isso nos fez recorrer ao dicionário Greco-Português de Isidro Pereira, que nos informa que Paidéia pode ser educação. Em cima desse pequeno registro, cabe-nos querer diferenciar que tipo de educação é essa helena, que não consta ainda disseminada em nossa cultura brasileira. Mesmo no nosso caderno de estudos, veremos que não há um tópico intitulado Paidéia. Não obstante os textos nos informarem sobre Homero, Hesíodo, Mito, Religião, não temos, todavia, ainda clara uma definição do que seja a Paidéia. E isso talvez até se explique, porque antes de ser um conceito monádico, a paidéia seria uma articulação de conceituações e práticas, que levaria o homem a uma certa eudaimonía ou mesmo a um certo tipo de ética universal. E nesse sentido haveria que se fazer a devida distinção do conceito de Educação já tão desgastado com o de Paidéia, que envolveria toda uma historicidade helena que remonta aos tempos dos poetas Hesíodo e Homero. É evidente que no caderno de estudos bem como em qualquer livro sobre os helenos, percebemos que há que se fazer um estudo histórico-diacrônico para chegarmos por fim ao nascimento da filosofia grega, que seria, assim por dizer, o rompimento do mito pelo logos. E para isso se faz toda uma taxonomia histórica. E é essa taxonomia ou levantamento histórico que se torna um primeiro fio condutor ou linha de Ariadne, para nos levar ao que pretendemos: a paidéia grega. Não seria, portanto, o nosso intuito aqui rememorar todo o percurso dos cadernos pontuando ou elaborando toda uma nauseante repetição ou colagem já muito bem delineada. Pelo nosso lado foi instrutivo saber que Homero já nos dá os primeiros sinais em sua obra de uma coerência estrutural. É como nos informa o próprio caderno: ‘diferente de outras narrativas de outros povos, as obras de Homero não se preocupam apenas em descrever o monstruoso e o disforme, pelo contrário, a estruturação dos poemas homéricos traz consigo: harmonia, eurritimia, proporção, limite, medida.’ E isso por si só já denota um preâmbulo do futuro nascimento da filosofia grega. Os versos medidos já têm em si e per si um tipo de necessidade e universalidade, que a filosofia futura grega virá a exigir de sua razão fundamentada no logos: ‘ Jaeger comenta que Homero não conhece a mera aceitação passiva das tradições nem simples narração de fatos, mas exclusivamente o desenvolvimento interiormente necessário da ação de fase, nexo indissolúvel entre causa e efeito.’ Todavia, parece-nos que a razão exige antes de si uma elucubração que passe por explicações não assim tão racionais. E o que isso quer nos dizer? Isso quer nos dizer que não se chega na razão por um caminho direto. Seria a razão talvez toda a negação de um mito, religião ou dóxa? E isso implica que o mito, a religião e a dóxa são, em certa medida, os bastidores daquilo que denominaremos mais tarde de razão. No próprio caderno há uma pequena conceituação de mito: ‘é uma explicação, narrativo-alegórico-simbólica, intuitivo-fantástico-pedagógica.’ Mas a pergunta é: por que o homem antes de fundar a religião, o mito e a dóxa, já não fundou diretamente o lógos? E isso talvez tente explicar o que vem a ser a paidéia. E aí há algo de misterioso também. Mesmo hoje em dia questionamo-nos dessa forma: por que o homem que é dotado de razão já não atingiu de uma só vez a totalidade da razão? Por que o homem não inventou a internet no século XV? Por que ainda não encontrou a sua ética universal de uma vez? E realmente nesse sentido, poderíamos recorrer a Descartes e pensar nesse Deus malicioso, o que, no entanto, nos afastaria dessa mesma razão. De modo que parece que a razão necessita de uma dinâmica construída pelos homens e que essa dinâmica já estaria inserida num proto-filosofar. Jaeger mesmo já nos diz que ‘não é fácil traçar a fronteira temporal do momento que surge o pensamento racional. ‘ Jaeger acrescenta que ‘devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos.’ Mas o télos paidéico não seria em si também a razão. A razão não seria um fim em si mesmo, mas um aporte mais seguro e fidedigno a nos convencer da bondade e da beleza humana. E atrás dessa razão, haveria uma intenção de conduta ético-estético-ético-moralizante. E isso implicaria num fim paidéico. A construção de balizas éticas para fundamentar quiçá uma vida comunitária embasada na areté, como podemos confirmar no próprio caderno de estudo: ‘esse homem integral que se pretende formar, isto é, aquilo que deveria ser’ é ‘resultado de um processo de disciplina.’ O problema a nosso ver é que ou o homem se perdeu num determinado momento da história ou nunca se encontrou naquilo que posicionamos como homem virtuoso. O saber é hoje como sabemos mais uma moeda nas mãos de poucos no intuito de prover os seus bolsos e menos as suas virtudes. Os sofistas já foram alcunhados acertada ou erroneamente por isso. Hoje o homem ‘axial e virtuoso’ é o que detém o conhecimento do discurso e não a sabedoria. O homem socrático, até para pontuarmos e saltarmos em nosso propósito, seria mesmo um achaque em nossos dias. Digno, talvez, de um cicuta metafórica. O homem do pensamento abstrato e que não intenta um registro ou’ma titulação é jogado ao rio estígio sem nenhuma comiseração. Mas nas grandes universidades ensina-se ainda o filosofar socrático. Nas palestras são apresentados verdadeiros catataus curriculares que nem sempre dão conta do que depois nos é apresentado. O homem que escreve de vinte a trinta livros é considerado muito mais virtuoso do que aquele que nada escreveu. E isso diante da cultura grega seria algo sintomático e talvez o sinal de uma degenerescência, visto que ‘devemos considerar que, para a tradição grega, a linguagem escrita não era tão valorizada, pelo menos até certo período da história.’ Por falar em Sócrates, já se tornou um velho chavão dizer: ‘apenas sei que nada sei’. Mas mesmo os que proferem essa frase, a proferem num sentido de autocabotinismo e numa ironia tosca, no sentido mais de ratificar a sua etérea sapiência. É sabido ainda, por falar em Sócrates, que o ‘diálogo e as memórias são as formas literárias que nascem nos meios socráticos’ e que ‘ele considerava o diálogo a forma primitiva do pensamento filosófico e o único caminho para nos chegarmos a nos entender com os outros.’ Diante de tudo isso e fazendo um salto monumental na história, acabamos por perceber que a paidéia grega teria sim um télos, e que sabemos e mesmo intuímos o que seria esse télos --, mas saber não é conhecer e conhecer também não é saber. O homem contemporâneo separou, ao contrário de Platão, corpo e alma: o homem reza e fuma; o homem palestra sobre a ecologia estribado num papel não reciclado; o homem acumula títulos, conhecimentos, mas não conhece a sabedoria; o homem é apolíneo na academia e dionisíaco em suas ágapes noctívagas regadas a cânhamo e cocaína – e por isso e por outras é que o homem contemporâneo nos é um tanto assimétrico: já não é o dono de seu corpo nem da sua alma, e ainda por cima perdeu o sentido exato da reflexão, que para Sócrates seria o maior dos seus males. Então a pergunta que nos fica é: compreender ou viver, com efeito, aquilo que intentamos normalmente conceituar como Paidéia; a Paidéia mesmo o que é?
Wilson Luques Costa
 

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