Os derradeiros dias de um velho solitário numa democracia em perigo
Wilson Luques Costa
2019
01.05
Sou um velho solitário numa democracia em perigo e nunca julguei causa suficiente alguém ser preso sem provas cabais.
Também não gostaria de me precipitar sobre o destino desse meu país.
Para falar a verdade, há tempos que já não leio os jornais matutinos.
Concedo à história o julgamento ulterior.
Quase também esqueço de dizer que neste exato momento o novo presidente faz um discurso incisivo e divide a minha nação que nunca foi afeita aos debates políticos.
Pego o celular e faço uma pesquisa pelos blogs e sites. O assunto é a posse de nosso presidente.
Na TV de plasma bandeiras verdes e amarelas denotam o ufanismo
conservador que deposita toda a sua fé no novo presidente.
Estou rodeado de livros que vez ou outra folheio.
Faço uma nova busca pelo celular.
Leio postagens contra o novo presidente.
Lá fora pessoas ouvem rap, samba, sertanejo e comem frango com farofa.
Vou ter com eles, não obstante abominar essas festas de final de ano.
Abro a geladeira. Procuro algo para comer.
Sobre a mesa livros que retirei da biblioteca.
Retorno à minha ociosidade.
Na TV só falam do novo presidente.
Procuro um programa esportivo e nada que me atraia.
Exceto a manchete: "Corinthians deve contratar um centroavante argentino".
Essa é a notícia mais alvissareira do dia de hoje.
Penso em ir ao mercado, mas lembro que quase tudo está fechado.
Coloco o celular para carregar e minha esposa me adverte que não posso esquecer e dar supercarga.
Digo à minha esposa que tomarei um banho.
Pego a toalha.
Lembro que esquecemos de comprar sabonete.
Mas tudo está fechado.
Antes de ir ao banheiro, faço uma nova pesquisa pelo celular.
Estou de férias.
Vou mais uma vez à minha pequena biblioteca.
Folheio mais alguns livros. O dia está terminando.
Tomo banho.
Enxugo bem os meus pés. Lembro que preciso fazer gongyo.
Faço daimoku pedindo paz aos meus e ao meu país.
Pego o livro de gramática grega. Mas não me animo.
Sintonizo num programa de fofoca. Vejo uma jogadora na TV.
Fala de sua carreira e dos filhos. Diz querer um novo namorado.
Continuo assistindo ao programa na falta de algo mais interessante.
Desligo a TV.
Vou para a minha cama e folheio mais alguns livros.
02.05
Na TV de plasma, as mesmas notícias de ontem.
Novas medidas são tomadas.
Há um misto de esperança e revolta no Brasil.
Pensando ontem com os meus botões, concluí que o Brasil, esse país que amo e detesto, é um misto de filho bastardo de uma Jocasta desconhecida com dois rufiões capitalistas e marxistas.
Por isso, essa dificuldade em se criar uma identidade.
Vivemos num pêndulo econômico.
Ora aspiramos à riqueza mundial; ora nos iludimos com Sierra maestra e bolivarismos.
Fui à biblioteca próxima de casa entregar alguns livros.
Se não devolvê-los no tempo decorrido, ficarei suspenso por alguns dias.
Nem todos os livros eu leio.
Mas gosto de ficar rodeado de livros.
03.05
Li até o fim um livro de Cuenca, jovem escritor brasileiro selecionado com uma nova promessa pela Granta.
O título do livro é: “ Descobri que estava morto".
Bom tema para os dias em que vivo.
Também li duas narrativas de outro escritor brasileiro mais famoso que Cuenca.
Mas não me empolguei.
Tento reler pela segunda vez Contos Negreiros de Marcelino Freire.
Retirei outros quatro livros que pretendo ler nos 15 dias aprazados: Ondijaki, Raimundo Carrero, José Castelo e Chimamanda Ngozi Adichie.
Encetei o MEIO SOL AMARELO de Chimamanda.
Senti que há um enredo solto. Começo a gostar da leitura.
Leio deitado numa poltrona estilo lounge chair.
Enquanto mergulho na leitura, ouço um chamado.
Bob e Boni latem efusivamente. Fecho o livro.
Coloco-o sobre a loung chair e vou atender.
Não é ninguém e desisto da leitura.
07.05
O país vai entrando no seu ritmo.
Na verdade, tudo caminha para o seu lugar natural.
Lula continua preso em Curitiba.
Moro, o seu desafeto e “BOM MOÇO”, tornou-se ministro da Justiça.
Bolsonaro nomeia os seus ministros.
Medidas provisórias e emergenciais são tomadas.
O Brasil continua sendo o que é. Crimes no morro do Rio de Janeiro. Crimes nas periferias de São Paulo. Crimes por todo o país.
O Brasil é um país de desigualdades gritantes.
Desde o seu descobrimento, o Brasil é o país do futuro.
10.05
Nas redes sociais, há um embate entre direita e esquerda.
O Brasil vive um maniqueísmo nunca visto.
Conservadores querendo a volta dos preceitos religiosos e uma economia de mercado, por outro lado, os chamados de esquerda defendendo a tomada dos meios de produção da iniciativa privada.
Desgasto-me com essas pequenas reflexões que resultarão no nada.
12.05
Minha filha abraça-me e quer o meu colo. Meu filho quer brincar comigo.
Minha esposa mexe com suas flores e plantas.
A parreira de uva a cada dia se desenvolve.
Minha mulher, cortando cebola, irrita-se comigo.
Pede-me para fazer alguma coisa que preste que não seja pensar.
O céu escurece e pergunto a ela: será que o céu nublará nos próximos dias?
16.05
Estive relendo o prefácio de Paulo Rónai, como se escrevia bem nos tempos de antanho, da Comédia Humana, volume 1 - Cenas da Vida Privada -- e no capítulo sobre Balzac na escola, faz lembrar muitos casos análogos aqui no Brasil, quando não se presta atenção a verdadeiros talentos homiziados pela mediocridade.
Balzac, com efeito, não gostava de ser notário, escrevente, e, como diz o
Rónai, sim escritor e deu no que deu; um gênio.
22.05
Manhã nublada.
Ainda não li os noticiários.
Lula pelo que parece continua preso em Curitiba.
Na TV, a mudança na Previdência.
Sempre tive em conta que a aposentadoria nos leva a uma empolgação momentânea para depois nos colocar num estado depressivo que pode nos levar a um colapso da vida.
É da natureza do ser humano criar expedientes ilusórios ou fantasiosos para suportar a vida ou quem sabe a presença da morte.
A ilusão de termos um futuro paradisíaco funciona como um placebo mental.
O mesmo ocorre com as nossas fantasias políticas que não deixam de ser um expediente similar a um collapsus mentis.
Precisamos nos assegurar que somos seres humanos benevolentes e filantrópicos para nos salvar de um possível inferno.
28.05
O dia continua nublado.
Sobre a mesa livros que pretendo ler. O sol tenta despontar no horizonte.
Ontem, eu um velho solitário numa democracia em perigo dei uma folheada no Ulisses de Joyce.
A tradução é do Houaiss.
Para falar a verdade, o livro é chato demais.
Eu comprei o livro em 1990.
O livro está todo grifado, até a parte que tentei seguir.
Lembro-me que tentei ler aleatoriamente para poder compreendê-lo.
Já li inúmeros ensaios sobre o Ulisses de Joyce: que é dividido como os nossos órgãos do corpo humano e tantas outras esdrúxulas teorias.
Pasmem! Já tentei ler até em voz alta os seus trechos no banheiro.
Eu, particularmente, não pretendo perder o meu tempo lendo Ulisses de Joyce.
Uma porque o livro foi feito para não ser lido.
Ele é, na verdade, uma ruptura com os grandes romances.
Agora, o que mais me espanta é ouvir as pessoas dizerem que leram o livro de cabo a rabo, e que, ainda por cima, conseguiram compreendê-lo.
E aí dá vontade de perguntar a mim um velho solitário numa democracia em perigo se eles entenderam, de fato, as frases em grego transliteradas num português bem chinfrim!
Engana o velho solitário que eu gosto!
30.05
A casa em silêncio. Gosto do silêncio da manhã.
A justiça, como dizia Descartes, deve ser clara e distinta.
Mas onde há razão nessa vida?
O cachorro late.
Os pássaros gorjeiam.
Cântico dos pássaros na manhã silenciosa sem os homens.
14.06
Já estamos no final da primeira quinzena e ainda não vimos mudanças substanciais em meu país.
Em Fortaleza, atentados contra a população.
E eu me pergunto: aonde vai parar o meu país?
18.06
No Jornal Nacional, um acadêmico dá uma entrevista. É o mais novo imortal. Novo e já é um imortal. Lembro agora de uma máxima que li num velho livro de filosofia: “Em determinadas cidades, velhinhos vão para os asilos; velhacos para as Academias.”
22.06
UM CONTO SOBRE UM VELHACO
Era um sarau. Ele era um maníaco: estuprou a velha oitentona de protuberantes varizes; a velha era gorda, feia, espalhafatosa, cheirava a urina, traía o marido; o marido, ele, amasiado há anos com a melhor amiga de sua esposa; a amante, uma pérfida senhora inescrupulosa, saía às terças com o feirante da banca de laranja, além dela, havia uma outra, prostituta do número 356 que há tempos traía o outro, seu dileto marido, também, mais um corno juramentado da rua; e o grande escritor lia para as paredes vazias, as pessoas, à francesa, retirando-se, e o salão ficando vazio e o soco na cara, no estômago, daquela gentalha -- a pudicícia curvando- se ao valor da verdade; e o escritor continuava... soco na cara daqueles imbecis, lendo para as paredes e as paredes tinham ouvido e a vizinhança
tinha ouvido e no outro dia toda a cidade já sabia; o conto não era conto, era realidade; era um contista fajuta de primeira categoria aquele; nem inventar ele sabia; era sim o dedo-duro das mais altas das falsas consciências.
26.06
Enchentes na cidade. Mulher mata a facadas o marido alcoólatra. Jovens sequestrados por uma gangue morrem ao tentar fugir de um sequestro por vingança. Mortes de nossos jovens na periferia de meu país. Corrupção no meu país. Roubos por toda parte. Espero pela minha aposentadoria.
29.06
Entro no meu blog. Visito os Instagrans dos ricos. Dieta vegana. Meu país continua dividido. Esquerda e conservadores. Estou perdido. Olho para o livro Meio Sol Amarelo. Sou um velho solitário numa democracia em perigo. Pulo páginas. Leio trechos esparsos. Na Nigéria os mesmos corruptos.
01.07
Minha mulher me chama. Hoje, reunião com os shakubukus. Desligo o computador. Lula parece-me que ainda continua preso.
05.07
São 21h05. Ligo a TV.
O que mais faço na vida é zapear a TV. Sou um velho solitário.
08.07
Tento ler um texto em alemão. Tento ler algumas frases em grego. Tento ler um texto em inglês. Entro no youtube. Vejo uma longa entrevista de Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho é considerado o novo guru da direita brasileira. Hoje só se fala de Olavo de Carvalho. A esquerda o abomina. Os seus defensores o defendem com unhas e dentes. Eu não sei o que dizer. Não sei em que acreditar. Sou um velho solitário numa democracia em perigo.
09.7
Não acredito na esquerda. Não acredito na direita. Não acredito na bondade humana. Hoje, o governo Bolsonaro liberou o porte de armas. Somos uma sociedade violenta.
O que será de nós brasileiros? O Brasil não é um país pacífico. Sinto uma angústia humana. Não acredito nos homens. Lacan diz que desejamos o vazio ou o desejo do outro. Eu não desejo nada. Nada serve para nada. Acordamos. Escovamos os dentes, nem todos, e vamos nos distrair da morte. A vida é um vazio de nada.
12.07
Na TV Globo começa o BIG BROTHER. Vivemos um BIG BROTHER. Somos uma sociedade vigiada. Somos seres egoístas. Não conseguimos viver em sociedade.
Queremos nos destacar com as nossas individualidades. Vivemos uma farsa. Vivemos como dizia Debord numa sociedade do espetáculo.
13.07
Troveja lá fora. Relâmpagos e raios. Minha filha dorme na chaise longue. Meu filho dorme no colo da mãe. Meus filhos são os meus sonhos e a minha esperança. Sobre a mesa pratos e talheres. Penso em lavá-los. No BIG BROTHER, pessoas felizes. O BIG BROTHER nos ilude. Corremos em busca da fama. Corremos do vazio. Precisamos criar um significado para o vazio da vida.
Estamos numa corrida louca. Mas não sabemos aonde queremos chegar.
Corremos sem direção. Corremos por correr. Corremos por nada e pelo nada. Ninguém quer ser esquecido. Esquecem-se que o sol extirpará a terra.
14.07
Vanitas vanitarum.
15.07
Em minha mente palavras soltas. Sem nexo. Sem prosódia. Sem sintaxe. O pensamento é solto. O pensamento voa.
17.07
A razão possui as suas regras. Regra do terceiro excluído. Regra da causa suficiente. O princípio da identidade.
Regra da contradição ou não contradição. Somos uma tabula rasa. Lembro de John Locke. Lembro de Hume. Lembro de Kant. O Imperativo Hipotético. O Imperativo Categórico. Mas quem usa a razão? A vida é a não razão. É o hábito pragmático. É philia. É eros.É paixão. Pathós. Lógos.
Leio: " Mathematik und Physik sind die beiden theoretischen Erkenntnisse der Vernunft..."
Faço exercícios de leitura e transcrição: Hómeros, biblíon, demokratía, oidé, naûs, krísis, stoikós. Penso ser um stoikós na krísis. O álpha e o méga.
19.07
Olho para os meus filhos. Quadros de Flexão: lógos, lóge, lógon,
lógou... Leio: " Die Wahrheit zu sagen ist eine Pflicht." Vou lavar os talhares. Depois lerei qualquer coisa. Uma memória. Uma frase. Um poema.
22.07
Chove em Sampa. A previdência. O problema do Brasil é a previdência. Tudo vai se solucionar quando deputados e senadores corruptos aprovarem a previdência. O Brasil deveria também se aposentar.
24.07
Dirijo-me até a biblioteca. Levo os meus filhos na Biblioteca. Biblioteca é o Processo Civilizatório que precisamos.
26.07
No Senado e no Congresso conchavos e mais conchavos. Moro é acusado de manipulação ética. Intercept intercepta suas mensagens.
Não há ética no desespero nem no açodamento.
Não há ética quando se quer fazer justiça com injustiça.
01.08
A mídia está dividida. Fakes e mais mais fakes. O mundo é fake. A nossa vida é um fake de Deus.
06.08
Hoje, acordei pensando que o ano é uma invenção humana. Não sei se boa ou má. Mas é importante esse início e fim, porque encerra ciclos que psicologicamente reavivam os nossos sonhos e esperanças. Se o tempo não tivesse um fim, provavelmente entraríamos num estado patológico pior do que vivemos. Ao darmos uma torção no tempo, quebramos a continuidade e criamos uma ilusão que o tempo se renova, não obstante correr ledo ao estertor. O tempo talvez não seja circular. O tempo é talvez um rio de Heráclito infinito. Mas apavora-nos não saber em que mar vai dar. Então pegamos de um ponto qualquer e uma torção fazemos; e fingimos para nós que tudo que vivemos foi um mero afluente. E do ponto dessa torção lobrigamos novos afluentes, novos mares, novos rios; enquanto o mar de Heráclito vai fluindo, às vezes, caudaloso, feroz e para outros sereno.
E assim o mar heraclitiano vai, não obstante e apesar de nós.
13.08
Enquanto o Congresso vai fazendo os seus conluios com o Senado, eu vou revendo papéis que me remetem ao passado.
Minha vida consiste em zapear a TV e resgatar o passado. Jamais pensei em envelhecer tão rapidamente. Como os filósofos e poetas já disseram: “Mal nascemos e já começamos a morrer. “
15.08
Encontro em minhas papeladas um trabalho de pós-graduação. Lembro que fiz esse trabalho com raiva nos dentes. Há na certa um tom de ironia e revide.
16.08
A POESIA SALVARÁ A HUMANIDADE
Ao poeta cabe e não cabe pensar no universal
Platão: “nenhum poeta ainda cantou nem cantará a região que se situa acima dos céus.”
O poeta fala por metáforas, porque pretende recriar um mundo que não lhe cabe.
18.08
Em momentos de total solidão lembro que sou um escritor. É assim que me chamam. Chamam-me de poeta, filósofo, escritor.
Na verdade, sou um velho solitário que vive numa democracia em perigo.
21.08
É preciso lembrar que Lula continua preso. Sérgio Moro o baluarte da justiça e panaceia brasileiras sob suspeição de relações espúrias com Deltan Dallagnol.
25.08
Reviro as minhas memórias. O passado ficou no esquecimento. O presente é caótico e a esperança escorre-me pelos dedos.
26.08
Leio que as eleições, no Brasil, são um tipo de censo do QI da Sociedade Brasileira.
27.08
Normalmente associa-se um escritor a alguém que vive escrevendo; que produz pletoras e pletoras de textos; que costura, urde, relata, organiza, detalha, descreve com filigranas um vaso de porcelana ou uma ida a algum lugar, que rememora, que inventa, que senta à mesa e passa horas e horas escrevendo; que escreve laudas e laudas para salvar, se muito, umas duas ou três linhas por dia, que reescreve, corrige, revisa, revisa e revisa; que escreve crônicas para três ou quatro jornais ao mesmo tempo, que nas horas vagas escreve ainda contos, poesia, ensaios, que publica ao longo da vida trinta ou quarenta romances, que ganha prêmios e mais prêmios, que vai a coquetéis, que viaja a Paris, Barcelona, Berlim e Madri; que faz oficinas literárias, e que escreve e escreve e escreve mais e mais. Como chama mesmo o contrário disso tudo? Então eu sou esse contrário ou um velho solitário numa democracia em perigo.
31.08
Na TV, fakes e mais fakes. Notícias vazadas em nome da democracia em perigo. Penso numa máxima que li pichada num muro de uma escola: Quando os jornais julgam o provável réu, antes da oficial justiça julgar, os jornais criam dois réus: o réu propriamente dito, e a própria justiça que é julgada antes mesmo de julgar.
02.09
Hoje peguei o metrô até a Praça da Sé. Nos vagões, homens vendendo barbeadores, pilhas, bolsas, baterias, soluções milagrosas para a pele e o pênis, homens fazendo stand ups sem que arranquem um mísero sorriso de Gioconda das pessoas.
De repente, entra uma mulher com três filhos pequenos pedindo:
Boa tarde,
Eu vim de Curumaiama e tenho seis filhos para criar...
Se vocês puderem me dar uma ajuda... uma simples ajuda
uma moeda um passe
um litro de leite um trocado
uma fralda um sapato um xale
um carrinho de bebê um lanche
um almoço um café uma saia uma calça
uma mamadeira uma casa
um quartinho um marido
um pouco de carinho uma fraternidade um beijo
um abraço
um aperto de mão um bom dia
um passe bem um afago
um chamego um livro
uma solidariedade uma compreensão uma escola
um emprego uma lata de leite um suicídio
uma bala na minha cabeça
Muito obrigado
Deus lhes ajude e fiquem com Deus...
09.09
No metrô, quando eu retornava de minha visita a umas livrarias na praça da sé, eu li um conto que uma passageira estava lendo. Sem ela perceber, eu fui acompanhando a sua leitura. Percebi que ficou incomodada com a minha curiosidade. Tentou dissimular e esconder as páginas de meus olhos. A democracia anda mesmo em perigo e eu continuo um velho solitário.
12.09
Eu um velho solitário numa democracia em perigo, jamais imaginei que esse poema um dia num futuro não tão longínquo faria tanto sentido.
Primeiro são os velhos sussurros que mal conhecemos
Depois sussurros e mais sussurros que mal percebemos
A guerra A bomba
Vindas pela televisão mídia em geral
ou rádio
E apenas sussurros A guerra
A doença a morte Invadem-nos Inexoráveis
De repente
Estamos num interminável campo
de batalha
e também mal percebemos
15.09
De todos os animais, o que mais aprecio é o velho solitário e a sua solidão de estar consigo.
17.09
Hoje, sentado na praça e observando a natureza de um gato me veio uma inspiração.
Altivo o felino olha-me e pede-me Que lhe faça fosquinha
Ao seu comando obedeço No leito
Rogo a deus que nos proteja a mim e a ele
gato de sete vidas
E é na sua graciosidade e no seu silêncio que eu o observo
Invejante
da prodigalidade de quem não necessita
da invenção de deuses
21.09
Como um velho solitário numa democracia em perigo, tentei ler vários livros esse ano, mas a maioria ficou pela metade.
22.09
Estou em casa, velho solitário tomando sopa pelos lados numa democracia em perigo.
Lula continua preso.
Nada posso dizer agora.
23.09
Espero passar os dias nublados. Enquanto isso, acompanho mais uma crise de meu país. Esquento pouca água para fazer café. Sorvo o café. A borra do café excita-me ao poema.
25.09
Acordo cedo. Faço o meu desjejum. Saio para dar uma volta. Sento no banco da praça. Observo os pombos. Gosto de observar os pombos, mas me dizem que pombos são infecciosos. Velhos solitários também.
27.09
Ando sozinho. Cumprimento os lojistas. Encontro um senhor. Batemos papo. O assunto é política. Percebo que quer defender suas ideias. E eu o ouço. Tento argumentar, mas ele fala como um velho perdigoto. Temos quase a mesma idade. Somos uns velhos solitários numa democracia em perigo.
O velho não me deixa ao menos dizer que preciso retornar para a minha casa. Fala sem parar. Fala sobre o The Intercept. Finjo demonstrar que nunca li uma linha de Kant. Tento tergiversar. Mas ele que sempre ter razão.
11.10
Filas e filas de carros nas grandes rodovias. Famílias fugindo da loucura de São Paulo. Paulistanos parecem ter prazer em viver engarrafados.
12.10
Eu sou um velho solitário que não quer sair de casa.
15.10
Leio as notícias. Não aguento mais tantas notícias. É o Lava Jato. É a corrupção.
Agora mesmo vi um velho solitário discutindo com outros velhos solitários sobre o futuro do Brasil. Um dos velhos parecia ter 87 anos; o outro tinha pelo que me parecia uns 84 ou 85. Pensei comigo: ainda bem que não tiveram tempo suficiente para fazerem cálculos matemáticos nem projeção do futuro. Mas eu juro que eu via em seus rostos uma nesga azul de esperança.
17.10
Manhã ensolarada. Saí mais uma vez para dar uma volta. Já fazia três dias que eu não saia de casa. Mas hoje com o sol resolvi dar uma volta. Como sempre, cumprimento os vizinhos e os comerciantes de meu bairro. Velhos solitários jogam dominó na praça. Gritam, não conversam, sobre política. Um diz que Moro é corrupto. Outro diz que Lula é ladrão e que roubou o Lava Jato. Tentei desviar de um carro. Uma bicicleta quase me atropela. O menino grita: sai da frente seu velho safado. Atravessei a rua, não olhei para trás e fingi não ser comigo.
Aquela frase ficou perturbando o meu neurônio: sai da frente seu velho safado. Virei a esquina e retornei para casa.
Chegando em casa, comecei a zapear a TV. Na tela da TV, um velho senador também safado discursava sobre a corrupção endêmica do Brasil.
25.10
Manhã fria e ensolarada. Vou tomar um banho e a água está gelada. Detesto tomar banho gelado, então saio rapidamente do chuveiro. Coloco dois moletons, mas mesmo assim continuo com frio. Saio para ir ao mercado. Cumprimento o vendedor de ovos. Conversei poucas vezes com o vendedor de ovos. Certa feita, indaguei-lhe se era do Nordeste e ele respondeu-me que sim. Volto do mercado com cinco pãezinhos quentinhos. Desvio de uma água escura e salobra. No caminho cumprimento as pessoas que jogam dominó na praça. Gritam como papagaios famélicos. E eu me pergunto: será que é o destino dos velhos solitários jogar dominó nas praças e gritar como papagaios famélicos¿ Chegando ao portão, confundo- me ao procurar a chave num molho bem confuso com mais de 12 chaves. Encontro a chave do portão frontal. Procuro nos livros a chave para compreender o Brasil. Acho que precisarei de uma chave micha para desvendar o seu segredo.
27.10
REFLEXÃO DE UM HOMEM SOLITÁRIO NUMA DEMOCRACIA EM PERIGO
Eu acho que a grande tendência do homem, e que seria por definitivo o seu saber, é calar-se; mas isso seria muito diferente do homem tímido, que não fala ou só tartamudeia por uma característica sua psicológica.
Digo calar-se, na acepção beckttiana quando afirma: ´eu não tenho nada a dizer, mas só eu sei como não dizê-lo.`
Por isso, desculpem-me se a frase de Beckett não é bem assim.
Eu, por exemplo, ando ainda muito longe de tudo isso: de tornar-me o homo silentium.
Isso eu julgo que vem com a idade e com a experiência; mas já faz algum tempo que eu venho sentindo o avanço do tempo: uma ruga no sobrolho ali que me parecia uma coisa passageira que vive todo dia me piscando, o cabelo que se torna rarefeito a cada dia, a mão que enruga, o desinteresse por atividades que até ontem pareciam imprescindíveis.
Ficar em casa com uma maior assiduidade.
A semana que mal começa, mal termina e vice-versa.
A primavera que já passou, o inverno que começa e acaba.
É verdade, ainda nos sentimos moleques, provocativos.
Esquecemos que nosso tempo já passou.
Queremos remodelar a estrutura do mundo e nem nos apercebemos que ela já foi remodelada faz anos por uma injunção natural da natureza.
O olhar blasé pelos jornais. Leituras esparsas dos leads.
Mas há jornais ainda?
Eu acho que a grande tendência do homem, e que seria, por definitivo, o seu saber, é calar-se.
Mas isso seria muito diferente do homem tímido, que não fala, ou só tartamudeia, por uma característica psicológica sua.
Digo calar-se, na acepção beckttiana, quando afirma: ´eu não tenho nada a dizer, mas só eu eu sei como não dizê-lo.`
Há certos momentos nas nossas vidas, que começamos a nos tornar repetitivos.
29.10
Passo pela praça, onde velhos solitários jogam dominó e me recordo de Joseph, um velho empertigado e escroque. Joseph era orgulhoso. Joseph orgulhava-se de ter estudado em Harvard sem ter pisado ao menos um dia em solo americano. Joseph com sua cabeleira rara e rala era um típico personagem de livros de Philip Roth.
Lembrava Sabath se pensarmos nas peripécias que cotidianamente praticava. Sentia -se ainda um exímio jogador de basebol , além de um galanteador de primeira categoria. Só
tinha um problema caseiro, era dominado pela esposa e amantes como uma bola era dominada por Messi, Guarrincha ou Pelé. Joseph nas horas em que não estava agindo como um pérfido personagem shakespeareano, roncava no sofá feito um porco que está para a engorda e ali, solitário, recordava-se de suas quase infinitas fintas e jogadas que fizera enquanto não era ainda um funcionário aposentado da secretária da Fazenda da Administração do Estado. Joseph fora de
fato um excelente jogador. Jogou na Bolsa e no Bicho. Jogou com as mulheres, jogou com os amigos, jogou com os inimigos, jogou com tudo; além de brincar e açambarcar todo o pecúlio de seus amigos, colegas, parentes e de seus fidelizados clientes. Dizem as más línguas que também jogou todo o seu ódio azedo contra o mundo. De fato, para Joseph a vida era um verdadeiro tablado para as refregas. Sua alcunha entre os amigos era: Sabath, o velho perdigoto, que cospe de noite, que cospe de dia e até no prato que já comeu. Agora, grita como um papagaio famélico lá na praça.
31.10
Estou deitado na cama. Crianças brincam pelo quintal. Há um corre-corre danado. O mundo, o nosso mundo, para elas não existe. O que existe, se existe, é o mundo das crianças que brincam pelo quintal. Lá fora também há um corre-corre danado. Mas não é o corre-corre das crianças que brincam pelo quintal. Lá fora são outras correrias. É um quintal inóspito para as crianças e para mim, que estou na cama aqui deitado. Esse quintal um dia será delas, como foi meu também outrora. É nele que essas crianças vão correr e brincar, ou quem sabe o quintal brincar de brincar com elas.
03.11
LENDO GADAMER
Agora na parte da manhã, eu, um velho solitário, li um pequeno relato da biografia de Gadamer.
Parece-me que Gadamer rejeita o lado absoluto da ciência.
Gadamer parece ser um tipo de relativista.
Gadamer escreveu pouco ao longo de sua vida.
Mas o que é escrever pouco?
Sócrates nada escreveu e Platão não via tanta credibilidade na escrita.
Aliás, por que escrevemos determinados textos e não outros?
Creio que escrevemos aquilo que julgamos de maior valência para a humanidade.
Escrever seria também um tipo de esperança.
Escrevemos para sermos reconhecidos, mesmo que depois de mortos.
Escrevemos para mudar o mundo e a sociedade.
Toda escrita objetiva uma perenidade e uma transvaloração do mundo.
O escrever, creio, está relacionado com a nossa finitude e o reconhecimento de nossa precariedade.
Escrevemos para não morrermos no coração da humanidade.
06.11
Eu, um velho solitário, cheguei quase agora do centro de sampa. Primeiro, estive num sebo da liberdade. Lá folheei uma gama imensa de livros de filosofia. Depois, folheei Bolaño e Benedetti e Lhosa.
Solicitei Musil, mas não tinha no sebo. Cismei com Sebald, mas declinei como declinei outro escritor muito cultuado e saí do sebo à francesa.
08.11
Vivo solitário num cômodo e cozinha. Não casei. Preferi viver com a minha mãe até o dia de sua morte em 2001. Tive cinco irmãos. Três já morreram. A minha irmã mais velha já não consegue cuidar de mim. A minha irmã mais nova finge que eu não existo. Sou um velho solitário. Vivo das lembranças do passado. Tenho vários sobrinhos, mas quase ninguém cuida de mim. Meus sobrinhos também fingem que eu não existo. Mas eu pergunto: será que eu existo¿
13.11
Os velhos solitários lamentam a velhice, mas a velhice tem uma qualidade: é destruidora implacável da empáfia e arrogância humanas.
14.11
A cada dia a morte dos outros anuncia a nossa própria morte.
17.11
Somos uns velhos solitários à espera da morte.
21.11
Acordo todo cagado. Meu sobrinho vem me dar café com leite. Sou um Gregor Samsa brasileiro. Todos seremos um dia um Gregor Samsa na vida.
25.11
Forte indisposição. Não consigo sair da cama. Ouço que irão chamar o Samu.
Creio que seja uma indisposição passageira. Lembro que Lula continua preso em Curitiba. Moro está sob suspeita.
27.11
Acordei com dores nas costas.
Hoje, pela manhã o leito ao lado ficou vazio.
Agora acaba de chegar um outro velho solitário.
Ele ocupará o leito 89 que ficou disponível ontem com a morte de seu Januário Rodrigues.
Estava me sentindo muito solitário.
Meus sobrinhos vieram ontem rapidamente me visitar.
Agora na parte da manhã, tomei um caldo leve.
As enfermeiras têm sido muito gentis comigo.
Gosto da Mariluci que parece uma menina que amei na minha juventude.
Mariluci pegou nas minhas mãos e eu senti um arrepio que subiu pela espinha.
Eu acho que estou apaixonado por Mariluci.
Mas eu um velho solitário de oitenta e nove anos tenho vergonha de falar para as pessoas que ainda eu consigo amar.
Agora, entrou aquele enfermeiro carrancudo.
Ele veio medir a nossa pressão e trocar as nossas fraldas.
Ele parece não gostar de mim. Estou cheirando urina.
Mariluci não vai gostar de saber que estou cheirando urina.
Continuo com dores nas costas. A minha bexiga continua cheia. O meu pênis continua ereto.
Será que é tesão pela enfermeira Mariluci?
Eu que nunca casei, sonho em casar quando sair daqui com a enfermeira Mariluci.
Será que ela vai aceitar o meu pedido?
Eu nunca senti um amor tão profundo como esse que sinto pela enfermeira Mariluci.
Eu amo Mariluci como nunca amei alguém em toda a minha vida.
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