ENTREVISTA COM O ESCRITOR E POETA LUIS DOLHNIKOFF



1 - Fale de você: onde nasceu? qual formação? onde vive? o que faz?


Nasci em 1961 na cidade de São Paulo, a desumana, a insuportável. Vivo em Florianópolis. Estudei na FMUSP e na FFLCH. Em termos profissionais, dedico-me aos meus livros e ao trabalho textual freelancer para editoras.


2 - Quais são os seus escritores preferidos? Por quê?


A lista dos meus escritores preferidos é muito longa.  Além disso, muda com o tempo. Mas posso dizer que comecei pela literatura russa, e, em relação à poesia, minha primeira grande admiração foi Maiakóvski. Na prosa, começaria por Machado. Em seguida, Cervantes. Em seguida, Bashevis Singer. Em seguida...


3 - Como é o seu cotidiano?


Vivo numa praia isolada no sul da Ilha de Santa Catarina. Antes da pandemia, vivia no que depois seria chamado de quarentena. Com a diferença de que costumava nadar no mar. Depois as praias foram fechadas. Depois, reabertas. Não retomei o hábito. O centro do meu dia a dia é meu trabalho textual, o próprio e o alheio, editorial. E ler e pensar. Sobre questões objetivas, incluindo literatura, política, história etc. Mas, como na natação, dado o estado do mundo, da cultura, de tudo, não tenho atualmente conseguido ir muito longe.


4 - Quantos livros publicou?


Publiquei oito livros.Seis volumes de poesia: Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski); Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990); Microcosmo (Olavobrás, 1991), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009); As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016); Impressões do pântano (Quatro Cantos, 2020). E ainda os volumes de contos Os homens de ferro (Olavobrás, 1992) e de poesia para crianças A menina que media as palavras (São Paulo, Quatro Cantos, 2013).


5 - Quais foram as suas alegrias literárias? 


No singular: escrever. Descobri muito cedo que a poesia era a linguagem em que conseguia pensar melhor. Em consequência, pensar também sobre a própria poesia. Daí ter me tornado crítico literário. Também porque o estado da poesia brasileira, depois do nosso enorme século XX poético (uma das principais poéticas mundiais), Drummond, Cabral e um longo etc., foi decaindo, como o próprio país. No fim, acabei me tornando um escritor, no sentido lato. Acabo de concluir um romance, 1999 (inédito), cujo personagem principal é a São Paulo da segunda metade do século XX, através, justamente, das aventuras e desventuras de um escritor brasileiro então em formação.


6- Quais foram as suas frustrações literárias? 


Minha maior frustração literária foi aquela causada por mim mesmo. Comecei muito cedo e, de certa forma, muito fácil. Publiquei meu livro zero aos 18 anos, pelo grande Massao Ono. Meu livro um teve apresentação de Paulo Leminski, de quem me tornei amigo também muito cedo. Através dele, por um caminho que não deixa de ser meio torto (via Curitiba), me inseri, digamos, no meio do meio lítero-poético paulistano, convivendo, por exemplo, com Haroldo e Augusto de Campos (com o Haroldo, co-organizei algunsdos primeiros Bloomsday de São Paulo no Finnegan´s Pub), e todos os da minha geração ou das próximas, como Régis Bonvicino. Conheci ou fui amigo de “todo mundo”, de Roberto Piva, Hilda Hilst e Bruno Tolentino etc. Mas se minha vida social literária ia muitíssimo bem, não estava satisfeito com minha própria criação literária. Precisava de mais tempo, de mais silêncio. Somado ao fato de que, em 1990, a URSS implodiu, e a esquerda (que era minha “casa” ideológico-intelectual) imergiu na grande confusão de que não saiu até hoje (ao contrário), enquanto São Paulo caía e decaía rapidamente no mimetismo do yuppismo reaganiano (prenunciando o internetismo e o influencerismo atuais), decidi largar tudo. E São Paulo era todo o pacote. Para isso, precisava deixá-la e achar um lugar e um modo de vida em que gastasse pouco. Daí ter vindo, então, para o sul da Ilha de Santa Catarina. Além do isolamento geográfico, cortei quase todos os laços com o meio literário. E como esse meio se baseia inteiro no compadrio, consegui meu eremitismo lítero-social, apesar de não deixar de publicar meus livros e minha crítica. Mas à distância. Enfim, o que mais me frustra é esse mesmo compadrio, ou seja, a pequeneza desse meio, apesar de qualquer quantidade de autores. Com a expansão atual, houve a expansão de seu apequenamento. Paralela, não por acaso, ao apequenamento e ao acanhamento da crítica. A única coisa que cresceu, para cometer um cacófato, foi o número de referências acadêmicas apensas a todo e a cada nome. Todo mundo estudou aqui, fez mestrado ali, doutorado acolá, pós-doutorado em Shangrilá etc. Mas, claro, nada disso existia quando os nomes se sustentavam por si mesmos (ou seja, pelas próprias obras), por exemplo, se acaso alguém se chamasse Carlos, ou João, ou Ribamar, ou Graciliano, ou Clarice.


7 - Qual é o seu objetivo na literatura? 


Falhar da melhor maneira possível, ou seja, da melhor forma que conseguir.


8 - Você julga a escrita superior à oralidade? 


Não. São linguagens diferentes – e isto não é uma opinião, é uma constatação. No caso da poesia, basta citar dois exemplos, um clássico, o soneto, outro moderno, a poesia visual. O soneto tem uma dimensão, digamos, arquitetônica, no seu arranjo estrófico (tanto o italiano [4-4-3-3] quanto o inglês [4-4-2-2), arranjo que é inseparável tanto de sua estrutura rítmica quanto rímica. Assim, mesmo quando falado, sua oralização carrega essa estrutura. A poesia visual é, bem, visual. Mas mesmo na poesia modernista, senso lato, ou seja, a poesia escrita coloquializada pósmodernismo estrito senso, perduram, necessariamente, as marcas, os determinantes, de um longo fazer histórico, que são marcas e determinantes da poesia escrita. Na poesia oral, os maiores exemplos, no Brasil, são o rap (que não é, na verdade, música – apesar de pontuado por uma quase melodia –, mas cantofalado: rap significa rhythm and poetry) e o repente nordestino. E neles existem outras marcas linguísticas, as da linguagem oral – tão evidentes quanto as marcas semânticas de suas temáticas populares respectivamente urbana e regional. Um soneto pode ser musicado, como qualquer texto o pode, mas isto nada altera. Enquanto o rap e as letras de música popular, em outro exemplo, perdem quando postos no papel, porque perdem, justamente, sua dimensão oral-performática. Enfim, são coisas parecidas, mas distintas. O mesmo vale, mutatis mutandis, para a prosa. A ficção escrita, porque escrita, comporta virtualmente tudo, em quantidade de páginas e em grau de elaboração de seus textos, do vasto panorama da França do século XIX na obra de Balzac aos parágrafos prismáticos de Proust à multilinguagem de Joyce. Já a narrativa oral (excetuadas as grandes epopeias antigas, que são, não por acaso, anteriores à escrita, de Gilgamesh a Homero) utiliza e tem de utilizar outros recursos, como as grandes sínteses, as alusões, as referências cifradas, as figuras de linguagem reiteradas, a adjetivação dos personagens (mais do que sua descrição), sejam elas míticas, heroicas ou populares. Neste caso, não são coisas sequer parecidas.


9 - Como você se organiza para escrever? 


Por “registro mental”. Cada linguagem, a poesia, a prosa, a crítica, impõe certa modulação própria no trato com a linguagem verbal, justamente porque são linguagens distintas, com sintaxes distintas, e sintaxe é forma, estrutura, relação. De modo mais direto, quando escrevo um texto ensaístico, fico no “modo ensaio” (que não por acaso tem exigências próprias, como checagem de fontes, referências etc.); quando escrevo um poema, o mesmo (não sou um poeta espontaneísta; meus poemas são trabalhados e retrabalhados longamente), assim como quando me sento para escrever ficção. Então a pergunta se tornaria: como você decide a que vai se dedicar quando se senta para escrever? Como regra, não decido, a decisão foi feita antes, porque normalmente estou dando continuidade a algo. Então, uma vez mais, a pergunta seria: como você decide que vai iniciar um poema, um ensaio ou uma ficção? Cada um tem uma resposta. A crítica normalmente é demandada de modo pragmático e direto, por exemplo, a publicação de um livro. No caso de um poema, ou melhor, de uma série de poemas (que é como os escrevo), falando empiricamente, o início costuma ser sensorial. Por exemplo, Impressões do pântano, meu livro de poemas recém lançado (pela Quatro Cantos da São Paulo), começou, não planejadamente, quando voltei à praia onde moro desde 1991, depois de um breve retorno de alguns anos a São Paulo (quando trabalhei como editor na Editora Hedra). Acontece que a praia se chama Pântano do Sul. E é uma praia muito bonita. Além disso, é uma praia de pescadores, entre os quais tenho muitos amigos. E eles são, de modo geral, de uma civilidade, no sentido lato, diferente, e melhor, para o meu gosto pessoal, do que a ansiosa aspereza incontornável do modo de ser paulistano. Resta acrescentar a imensurável feiura de São Paulo. Enfim, meu retorno à praia do Pântano significou, ao mesmo tempo, minha saída do pântano de São Paulo e, concomitantemente, do mundo contemporâneo, do qual São Paulo é uma metonímia. Não que a praia do Pântano esteja fora do pântano do mundo. Mas, de certa forma, está. Em suma, o que aconteceu, neste caso, é que o retorno à praia me levou quase automaticamente ao “modo mental poético”. Isto não tem absolutamente nada a ver com a velha “inspiração” romântica ou tardorromântica. Mas tem tudo a ver, por exemplo, com a inspiração do ar do mar. Com a amplitude da visão, com o ritmo lento, com a grandeza da beleza do lugar, que são melhor capturados pela sintética, imagética, rítmica e polissêmica linguagem poética (com o perdão da rima). Some-se a isto a percepção concomitante da distância de São Paulo e do mundo, e a síntese do título se explica: eu escreveria minhas impressões do pântano que eram, naquele momento, tanto as impressões da praia em volta, e de volta, quanto a do mundo distanciado, mas circundante. Mas, claro, isso é uma intelectualização a posteriori. Em todo caso, desde 2016, depois de começar essa série de poemas, dediquei-me a isso até 2020. As demais demandas literárias foram intercaladas à criação poética que ganhou então momentum, ou impulso. Quando decidi dar um basta nas minhas já não tão novas impressões dos pântanos, retomei racionalmente, ou programaticamente, meu romance inédito (1999), porque decidi que precisava decidir terminá-lo.


10 - Você quer ser reconhecido? Por quê? 


Quero que minha obra seja conhecida. Sou meio ou muito misantropo. Ou, dito de outro modo, sou marxista, da linhagem groucho-marxista, cuja conhecida palavra de ordem é: “Não ficaria sócio de um clube que me aceitasse”. Por isso quase não frequento as famosas mídias sociais. Só fui ter uma página no Facebook agora que ele está no início do fim, segundo se diz. Em função do recente lançamento de Impressões do pântano. Fiz isso pelo livro. Por mim nunca o faria.


11 - O que é um poeta ou um escritor? 


Pergunta muito oportuna. Uma das coisas que recém descobri pelo “feice” é que houve um retorno, na verdade, um novo recrudescimento (pois nunca desapareceu) da velha “aura” da figura do Poeta, esse ser meio metafísico, porque comunga de uma linguagem ou de uma arte também meio metafísica, ou o que seja, na velhíssima e imorredoura visão romântica da poesia como um fazer “inspirado”, seja lá isso o que for, e não racional, intelectual, artesanal– como se sabe que é, ao menos desde que Poe publicou, no século XIX, A filosofia da composição, em que descreve tecnicamente como construiu o poema O corvo. As palavras são estas mesmas: descreveu tecnicamente e construiu o poema. No entanto, todo o modernismo foi impotente para impedir que hoje a internet esteja coalhada de pessoas que incorporam poeta ou poetisa ao nome: Fulano Poeta de Tal, Fulana Cicrana Poetisa (poetisa, aliás, é tão arcaico quanto o romantismo; as poetas sérias exigem ser tradas como poetas). Como se se tratasse de pessoas que são, de alguma maneira essencial, poetas – ou como se, para sê-lo, teria de ser de algum modo essencial. Mas um poeta é, objetivamente, apenas alguém que se dedica à linguagem poética. Aliás, são poucos, e, sendo poucos, são talvez demais – porque a poesia não interessa mais, ou interessa muito pouco. Já escritor, habitualmente, refere-se ao ficcionista, ou seja, ao contista ou romancista. Talvez porque outras funções ou usos da prosa têm seus próprios denominadores, como ensaísta, jornalista, filósofo. Além disso, ou por isso, escritor também funciona como síntese, quando há mais de uma linguagem envolvida. Assim, por exemplo, eu deveria me descrever como poeta, romancista, contista e ensaísta, mais ou menos como há as “modelo, atriz e influencer”, mas acho excessivo. Então, quando necessário, refiro-me, justamente, como escritor.


12 - Todo escritor é vaidoso?


Com certeza. Se não fosse, ficaria quieto no seu canto. Uma das mais notórias exceções (portanto, confirmando a regra) foi Kafka, que pediu no fim da vida para seu amigo Max Brod queimar todos seus manuscritos inéditos, ou seja, toda sua obra. Fernando Pessoa é um caso ambíguo: só publicou um pequeno volume de poemas em vida (Mensagem), o resto deixou literalmente no baú. Isso em termos práticos. Mas, em termos teóricos, digamos, há mais do que indícios, em sua obra e outros escritos, de que sua pretensão literária era do tamanho do seu gênio, e por isso ele tinha uma relação complicada ou complexa com seu possível ou provável futuro papel na história literária. Por isso, talvez, por afinal se preocupar mais com esse futuro do que com seu presente, paradoxalmente descuidou de publicar sua obra. Obra que, no entanto, praticamente não tem um só poema que não seja centrado no pronome eu. Mesmo no autodesdenhoso Poema em linha reta, por exemplo, ou nas infindáveis autorreferências irônicas ou depreciativas, como as de Tabacaria, no fim, ou de início, sua obra serve ao pronome eu (a notória exceção é justamente Mensagem). Mas, tratando-se de Fernando Pessoa, está tudo certo, porque esse eu interessa, e muito, ao mundo. O problema é quando pequenos eus se manifestam insistentemente em pequenas obras, como é a regra.


13 - Como você lida com o fracasso?


Que fracasso? Porque há muitos. No meu caso ao menos, para começarhá o “programático”, ou esperado, dada a hipertrofia da minha autocrítica – que é, também, minha tábua de salvação, porque não me deixa deixar nada “barato”, em mais de um sentido. Mas há também o inevitável, dada a condenação a priori que é ser um escritor brasileiro. Condenação, justamente, ao fracasso. Ao menos no sentido objetivo de que a profissão de escritor simplesmente não existe no país. Por isso costumo dizer que todo escritor e poeta brasileiro é amador, porque ninguém vive de seu trabalho literário; portanto, não se trata, na acepção da palavra, de ser ou poder ser um profissional. As exceções são as exceções. Isso é profundamente irritante, mais do que frustrante, no meu caso, porque se soma necessariamente ao fracasso geral do país como sociedade. A inexistência ou impossibilidade de existência da profissão de escritor, como acontece nos EUA e na Europa, entre outros, é, neste sentido, apenas mais uma marca ou aspecto desse fracasso geral. Comparar dói, mas aclara. A Argentina, que não é nenhuma França, tem quatro ou cinco prêmios Nobel. O Brasil, zero. E não se trata de preconceito do comitê do Nobel. Sequer da falta de “nobelizáveis", no caso da literatura (no caso dos prêmios científicos a situação é ainda pior, porque se o Brasil tem e teve grandes cientistas, eles sempre tiveram enormes dificuldades de fazer ciência de ponta de alta qualidade, por causa... do fracasso histórico geral do país). No entanto tivemos, no século XX, Graciliano, Rosa, Drummond, Cabral, apenas para citar alguns nomes. Eles nunca receberam o reconhecimento internacional que merecem (incluindo, portanto, o do Nobel), não pela famosa condenação de escrever em português, pois outras línguas muito menores, em termos objetivos de número de falantes, já o receberam. Mas porque o Brasil é um gigante anão no cenário mundial, ou um anão gigantesco, e seu nanismo torna opacas, inaudíveis ou invisíveis, quando não impossíveis (no caso da ciência de ponta) suas realizações. Dito de outro modo, assim como o Brasil é um enorme cemitério ou assassino (muito mais do que mero desperdiçador) de talentos, também acaba sendo um peso morto amarrado às pernas daqueles que conseguem escapar (mas não de todo, com a possível exceção dos jogadores de futebol).


14 - Como você lida com o sucesso? 


Que sucesso?


15 - Qual é o autor contemporâneo que, de fato, você admira?Seja sincero (a). 


Na poesia brasileira é fácil: Régis Bonvicino. Um nome aliás conhecido, mas menos do que deveria, por razão daquele velho compadrio do meio literário brasileiro que referi acima. Acontece que ele não pratica a “boa e velha” política com p minúsculo em causa própria, a que a quase totalidade dos poetas brasileiros se dedica ainda mais do que à própria obra. Para piorar, hoje existe no país um verdadeiro sistema de pequenas sinecuras poéticas (ninguém fica rico com isso, mas muitos vivem disso), na forma de premiações, reconhecimentos vários, acadêmicos e extramuros, para não falar de cargos propriamente ditos, quase sempre estatais, em museus, casas de cultura, “espaços” disso e daquilo etc. E a ocupação de tais espaços, sem aspas, dá-se por indicação pessoal, pura e simplesmente. Se o país é uma grande república de bananas, seu meio literário é uma pequena república de bananas nanicos. Na prosa brasileira atual não tenho, sinceramente, nenhuma admiração particular. O nome óbvio seria o de Itamar Vieira Júnior, mas não li Torto arado. E não o li pelo mesmo motivo porque foi tão lido, citado e premiado. Talvez o leia um dia, e talvez o admire. Mas sou cético. Em minha visão de crítico literário, ou seja, de quem analisa, mais do que julga ou opina, começando pelo título, que é a porta de entrada de uma obra, especialmente de um romance, porque sintetiza sua temática, não tenho simpatia por torto arado. Por dois motivos: um semântico, outro sintático. Começando por este: o título traz um hipérbato, ou seja, uma inversão da posição sintática mais natural, ou corriqueira, da linguagem da época, pela anteposição do adjetivo. O mais corriqueiro, mais coloquial, menos “literário”, mais moderno, seria simplesmente arado torto. Sei que se trata de uma citação, de Tomás António Gonzaga, poeta do século XVIII. Isto explica o hipérbato, comum naquele tempo, mas (agora em minha opinião, não análise) não justifica tal escolha. Ou, ao menos, a contraindicaria. Pois a citação intitulada imprime de saída ao romance um indelével arcaísmo, que se reforça no campo semântico. Nada mais arcaico, além de agrário, ou porque agrário, do que um arado. Se não bastasse, a maioria da população brasileira hoje vive em cidades. Ou seja, o Brasil não é mais um país agrário. Mas o romance aborda, justamente, o Brasil ainda agrário. Não por acaso, no que li sobre ele, há várias referências ao velho romance regional e regionalista de um século atrás, com o qual guardaria relação. Bem, sou um animal urbano. Sim, conheço um pouco o sertão, ou um pouco mais do que isso, desde o norte de Minas até o sul do Ceará, incluindo, portanto, os sertões da Bahia, de Alagoas, da Paraíba e de Pernambuco (o vasto Cariri). Quando tinha 16 anos, quando era moda, como ainda é, viajar para o litoral do Nordeste, decidi viajar para o sertão, os sertões, onde passei vários meses numa pequena grande imersão, digamos, mesmo porque, naquela época, anos 1970, não havia celular, internet, Google Maps e mesmo telefone analógico, ao menos na imensa maior parte desses sertões. Fiquei incomunicável. E viajei da maneira mais aproximante com os locais e com os locais, de mochila e carona, fazendo eventualmente alguns trabalhos não especializados, como descer sacas de arroz do caminhão no qual chegara a Feira de Santana sobre a carga.Essa viagem teve duas motivações: uma, justamente, literária, por causa de Rosa, Graciliano, Euclides; outra, ideológica, pois eu era, à época, um comunistinha, e queria conhecer o famoso “Brasil profundo”. E posso dizer que conheci: cheguei antes da televisão, em muitos lugares. Em poucos, um único aparelho era colocado no início da noite (estrelada do sertão, sim) na pequena praça central, sobre uma mesa ou cadeira, e as pessoas se reuniam de pé para assistir, se não me engano, às novelas da Globo. Não me hospedava em hotéis ou pensões, que em muitos lugares sequer existiam, mas em casas. Isto dito, como dito, sou um animal urbano, num país hoje urbanizado. E se a antiga realidade social dos sertões ainda remanesce, sinceramente, por essa mesmaantiguidade, por essa mesma permanência, um romance que mais uma vez a aborde não me desperta interesse. Ora, direis, mas os romances urbanos são sempre... urbanos. Justamente: não há nenhum antiguidade, nenhuma permanência, na vida urbana, nódulo e nó da contemporaneidade capitalista, cuja principal característica é a impermanência. Como diria Marx, “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. E, eu acrescentaria, tudo o que não é também. Daí o romance – que eu chamo de épica decaída, porque a épica era a poesia da pólis (não do próprio poeta, ao contrário da lírica) –, depois de aprimorado e afinado por Balzac para dar contade captar as ruas, as casas, as fábricas, os corações e as mentes da sociedade capitalista moderna, ter-se tornado a linguagem literária por excelência da sociedade capitalista moderna – que é urbana e sempre mutantemente urbana (daí o romance ter sido dito uma forma literária proteica, ou seja, uma forma que sempre muda de forma). Pode-se ingenuamente acreditar que isso vale automaticamente para todas as linguagens, mas não é verdade. O mesmo romance moderno, com Balzac, Flaubert, Dickens, nasceu antes da poesia moderna propriamente dita (apesar de Rimbaud, Baudelaire [que quase só escreviam sonetos] e Poe), que apenas surgiria na transição dos séculos XIX e XX (apesar do pródromo de Mallarmé) e, mais precisamente, no início do XX (com as vanguardas). Não há paralelismo histórico automático nas linguagens artísticas. Em conclusão, por tudo isso, acredito que o que falta hoje à ficção brasileira é uma boa safra de romances urbanos, pois o que não falta no país são cidades, incluindo suas vastas pericidades, as famosas periferias. Bem sei que no atual ambiente cultural ideologicamente tóxico não é indicado não falar bem de Torto arado. Mas acrescento e explicito, em todo caso, que não falei mal do romance, nem poderia, porque, como disse, não o li. Apenas registrei o que vejo, criticamente, como um problema de gênero, gênero literário, obviamente, ou seja, tratar-se de um romance agrário. Para concluir, faço uma comparação com o cinema brasileiro. A quantidade de filmes sobre o sertão em geral e sobre o personagem de Lampião em particular supera títulos como São Paulo S.A. ou Rio 40 Graus. O cinema brasileiro, historicamente, foi mais prolífico em retratar o Brasil agrário do que o urbano, que, aliás, comumente aparece de forma datada ou capenga. O mesmo se pode dizer do romance brasileiro: historicamente, seus grandes títulos (Grande sertão, Vidas Secas, Os sertões), com a gigantesca exceção de Machado (que, nascido no morro, tornou-se o grande mestre do “asfalto”), não são – e ainda não são – urbanos. Apesar de uma nova e festejada safra de escritores, como José Falero, de Porto Alegre (autor de Os supridores), entre tantos outros, que representa, na verdade, uma nova forma de literatura engajada (incluindo a poesia) – tributária e militante, senso lato, do grupalismo e do identitarismo. E toda arte engajada (que o diga o realismo socialista), por se engajar mais em uma causa político-ideológica do que no embate com sua própria linguagem, paga um preço alto por esse engajamento. Parafraseando Pound, a grande arte não é política, no sentido estrito, mas realista no mais profundo sentido possível.

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