ARQUITETURA DA NOSTALGIA
Muitos prédios, casas e cantos são templos da memória em um bairro como a Vila Ré.
Para mim, os lugares nos quais eu morei por aqui (e não foram poucos), já são monumentos.
A primeira casa, na Rua Otá, já não existe mais. Tem um muro grande, nem consigo ver o que tem dentro. Antes, tinha um quintal lindo, enorme. Mas da parte da frente, o que guardo não é bonito, pois moramos amontoados em um único cômodo, ao lado de um corredor pelo qual passava o esgosto.
Outra casa era na Municipal, bem atrás da Escola Bartocci. Foi lá que vivemos duas enchentes, e aonde minha mãe machucou a perna no piso irregular. Mas também foi lá que eu brinquei muito de bola e aonde recebi a primeira carta de amor da minha vida - por onde você anda, guria?
Morei na Dené também , em um sobrado altíssimo que dava pra ver o Jardim Popular inteiro.
A proprietária era uma mulher azeda e os vizinhos, de padrão mais alto, não gostavam de nós. Foi morando nessa casa que arrumei meu primeiro emprego.
Passei um tempo no Jardim Nordeste, em uma rua que foi inteiramente desapropriada para a passagem das obras da avenida Tiquatira e em outra casa, em frente à praça principal do bairro, de onde aprendi a observar o mundo com olhos não mais infantis.
Mas tem um lugar no qual morei que duvido que seja parecido com qualquer outro que você, leitor, já tenha habitado. Eu vivi por mais de três anos na Sociedade Amigos de Vila Ré - um galpão que tem quase 80 anos. Na parte da frente tem uma casinha, que ocupamos no período em que eu estudava para o vestibular. Na biblioteca comunitária de lá eu passei dias e noites lendo, pesquisando, endoidando. Sob aquelas paredes de madeira que ficavam soprando o passado em meus ouvidos, me tornei universitário da ciência da História.
No filme “Sombras da Vida”, vemos como o personagem principal permanece por séculos no seu lugar, em um tempo circular, e vai desvendando cada ranhura e cada som que marca a história da casa. Acho que é assim com todo mundo. A gente leva dentro de si um pouco da arquitetura, e ela toma de nós algo que não é possível descrever. Talvez seja só nostalgia. Talvez seja só um pedacinho do concreto de nossos sonhos e dos nossos pesadelos.
Raimundo Justino da Silva é professor e escritor. Atua, desde os anos 90, em movimentos de educação e cultura na zona leste de São Paulo.
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