MEMÓRIAS VOLÁTEIS DO QUASE MESTRE DOUTOR GOLIARDO MELLITUS


     




Maldita a hora quando, naquela tarde, ele adentrou a sala. 

Lembro que era uma quarta-feira ensolarada e pelo reflexo do sol eram 16h30min. 

Era uma figura exótica. 

Parecia ter, se muito, 45 ou 46 anos. 

Cumprimentou a todos sem fixar os olhos que se escondiam atrás de uns óculos rayban.

Olhamo-nos uns aos outros sem saber muito bem quem era.

Sentou-se na cadeira e sobre a mesa colocou livros e várias cópias de xérox.

Lembro que me fixei num livro de filosofia em inglês. Tentei com o meu parco inglês traduzir o título daquele livro.

De repente, ele começou a falar. Falava num solilóquio que até parecia que ninguém lhe ouvia. Estupefatos, olhávamos uns aos outros e nada compreendíamos. Citava Kant, Heidegger, palavras alemãs, só para dar um sabor especial àquele espetáculo. 

Alguns alunos ali pareciam estabelecer com ele um jogo de cartas marcadas.

Eu tinha passado todo o meu dia no Centro Cultural São Paulo. Comentei com um amigo: vou fazer mestrado na PUCSP. Eu, um ano atrás, já tinha feito uma especialização na USP. Há dois anos abandonado um mestrado em Educação pelos Salesianos, mas para um autodidata como eu, aquela etiqueta era ainda muito insuficiente.

Já havia mestres, doutores, pós-doutores e eu ainda com aquela formação ridícula em jornalismo nos anos 80 feita nas coxas e sem o maior interesse por aquela universidade, ainda por cima, paga, particular e sem muito brilho, engolindo em meus ouvidos na viagem de trem que fazíamos os sibilantes trucos! trucos e trucos!

Até parecíamos naqueles trens abarrotados de estudantes gados que caminhavam sem nenhum retorno para o matadouro, mas resolvi tentar.

Eu precisava passar pelas grandes universidades.

Meu colega assentiu com a cabeça e fez uma micagem com o lado esquerdo do sobrolho. 

Boa tarde! A secretária fingiu que não me viu.

Boa tarde, senhora!

Pois não!

Sabe... meu nome é... e eu queria saber sobre o procedimento para a inscrição do curso de mestrado em filosofia...

O senhor se formou aqui?

Não... eu sou formado em jornalismo por outra...

Olha, moço, o prazo da inscrição vai até o dia. O senhor tem que trazer esses documentos e pagar uma taxa no valor estipulado nessa folha. Está tudo aí... O senhor também tem que ler essa relação de livros afixada na parede... O exame será daqui a duas semanas e pela sua formação o senhor não vai conseguir entrar direto, porque precisa formação em filosofia... não sei... eu se fosse o senhor... não sei...

Ok, moça! Muito obrigado!

Eu tinha completado 36 anos e os pesadelos e as constantes idas noturnas ao banheiro já anunciavam: 444 de glicemia em jejum.

A partir de hoje, o senhor vai ter de se acostumar com essas variações e agulhas diárias!

Não entendi, doutor!

O senhor está diabético!

O que significa isso, doutor?

Significa dizer que o senhor vai ter que alterar os seus hábitos!

Quais hábitos, doutor?

Eu vou lhe passar esse regime que o senhor terá que seguir à risca. Saiba o senhor que diabetes leva à cegueira, ao emagrecimento, à amputação das pernas e outros órgãos e problemas de todos os tipos e espécies...

Eu vou morrer, doutor?

Todos nós vamos morrer um dia!

Assim que saí do consultório, abracei-me a uma árvore e comecei a chorar. Era o fim de tudo: 36 anos; livros apara escrever; cursos a fazer; livros para estudar; ter filhos; ter netos; realizar os infinitos sonhos que faltavam... Pensei em fazer um testamento! Mas do que e pra quem? 

 Logo pela manhã, antes do desjejum, li no corpo da seringa: BDU - 100 INSULIN 1 ml/cc. Desde aquele dia que abracei a árvore e chorei era essa a minha rotina matutina. Eu já me acostumara com as picadas diárias em jejum; ainda sonolento, medi aproximadamente 24, fiz um bolinho de carne próximo ao umbigo e furei-me. Logo em seguida, tomei café com leite com algumas bolachas e fui trabalhar.

Assim que subi até o quarto andar eu percebi que havia algo de errado.

Tudo aquilo parecia uma imensa fila do SUS.

Da relação dos livros, já houvera lido, anos anteriores, a Microfísica do Poder e quase todos, mas sem a intenção de catalogar ou fichar.

Li pelo deleite da leitura.

Havia uma tensão no ar.

Eu estava prestando exame na PUCSP.

Lugar de resistência política, onde soldados torturaram estudantes, onde em seu teatro encenaram a obra máxima de João Cabral de Melo Neto.

Recebi uma folha com um texto em inglês.

Não levei dicionário.

Quase todos portavam os seus dicionários.

Concentrei-me e encetei a tradução.

Era um texto sobre o filósofo inglês Bertrand Russel.

Desenvolvi também um texto sobre algum tema filosófico.

Assim que terminei o texto e a tradução fiz uma releitura e virei as folhas sobre a carteira.

Já havia devorado uns três ou quatro chocolates e tido umas duas ou três hipoglicemias, seguidas de elevadas hiperglicemias, que me jogavam na lona; mas eu resistia como um lutador de MMA.

Minha cara pálida, esfolada pela doença não me abatia.

Eu precisava manter-me intacto.

Mostrar rigidez, força, levantar-me do tatame, fingir que estava tudo bem, esconder as mãos trêmulas, ocultar o coração acelerado, a vertigem dos olhos, as dores nas pernas, as pontadas na cabeça, além do medo do desfalecimento momentâneo.

Mas resisti.

Tive suores novamente, confusão mental, bradicardia, taquicardia, medo, medo, medo, medo, síndromes do medo, medo, fome, vontade de urinar, tontura, vertigem, embaçamento dos olhos, sensação de ausência, de não estar, medo, medo, confusão mental, outra bradicardia seguida de taquicardia, síndromes do medo...

Tudo ao mesmo tempo se sucedia.

Nos poucos minutos de minha sanidade, compreendi que era para aguardar a chamada da entrevista.

Todos... me indaguei, mas antes que indagasse um dos monitores já avisara: poucos serão os que herdarão os reinos dos céus ou do inferno!  

Dias depois, chamaram-me para uma entrevista.

Naquele dia, tive outras várias recaídas.

Sentei-me diante de dois professores doutores que me fizeram um monte de perguntas.

Na verdade, eu fui falando de minhas leituras como autodidata.

Falava o que me vinha na cabeça.

Falava de Sócrates, Platão, Aristóteles, Os Pré-Socráticos, Montaigne, Russel, Voltaire, Nietzsche, Schopenhauer...

Fui falando o que vinha na minha cabeça de autodidata sem nenhum tipo de organização racional.

Misturava Adorno com Derrida; Derrida com Foucault; Foucault com Santo Agostinho etc.

A minha entrevista parecia mais uma ficha bibliográfica do que qualquer coisa.

Não sei, acho que os professores gostaram de mim.

Recebi um e-mail.

Olhei a relação. Onde estaria aquela fila do SUS?

Tinha sido aprovado!

É verdade: poucos herdarão os reinos dos céus ou do inferno! 

Agora eu era um aluno especial de mestrado em filosofia, com letras maiúsculas!

Não me recordo bem do primeiro dia de aula, mas deve ter sido dessas aulas com nomes esquisitos: "A pragmática de Cassirer num jogo dual hiperbólico da afasia presentificada no index de Brentano" ou "A desídia de Husserl em formular conhecimentos a posteriori num sentido duplo e antagônico na aporia erística formulada no Colóquio de Davos"; e eu me perguntava: o que eu estou fazendo aqui?

Olhava para os meus colegas de sala e eles na certa gostariam de me retribuir a mesma pergunta.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



 

É preciso informar que o nosso corpo discente era composto por mestrandos e doutorandos.

Na verdade, eu não sabia muito bem o que tudo isso significava; sabia que havia uma hierarquia e essa hierarquia devia ser respeitada: que doutorandos estão acima de mestrandos e lentes pós-doutorandos em França, Itália e, principalmente, Alemanha, acima de todos; e era preciso ouvir e calar.

 

 

 

 

 

 

 

 

Pelo que me recordo as aulas eram do tipo expositivo.

Em uma das aulas, recebemos um calhamaço com uma relação de livros em inglês, alemão, francês, menos espanhol e português, que não lemos.

Era um professor beirando os cinquenta anos, um pouco obeso, com uma barba bem aparada, que usava um paletó com uma calça de um tecido adequado à sua adiposidade.

Era um professor que nos conquistava com a sua simpatia; falava de Francesco Guicciardini que eu já havia lido alguma coisa, Pico Della Mirandola, Michelangelo e principalmente Maquiavel; citava Shakespeare e outros autores que eu já tivera também contato pelas minhas andanças por sebos e bibliotecas.

O outro professor que ministrava aula sobre Platão era uma figura exótica que fazia lembrar Cervantes. 

Acompanhávamos as suas leituras intercaladas de comentários sobre Platão.

Fixei-me num momento em que Platão no Banquete fazia um tipo de desqualificação dos poetas. 

Um dos alunos que ostentava uma barba mal cuidada e um relaxo na indumentária, que depois vim saber que era membro do MST, fazia o cotejamento em grego e italiano, o que me despertou o interesse em procurá-lo; não obstante o seu aparente desleixo e desinteresse pelos colegas da sala.

Na verdade, eram aulas que de um modo ou outro eu gostava de assistir.

Mas o que mais me encantava era o status quo de mestrando em filosofia pelo departamento de altos estudos daquela universidade.

Eu, na verdade, nunca tive interesse algum em desenvolver qualquer tese.

Além daquele doutorando do MST, havia alguns alunos ainda imberbes que trabalhavam numa editora famosa que fazia algumas publicações daqueles professores.

As aulas duravam em média três horas, com um pequeno intervalo de aproximadamente quinze minutos.

Eu frequentava a universidade duas ou três vezes por semana, não lembro bem.

Ouvia nos corredores os alunos exaltados comentando as suas teses em Kant, Frege, Brentano, Husserl e epistemologia Neokantista de Baden ou Marburg.

Eu passava pelo corredor correndo com receio que me perguntassem sobre a minha tese acerca das oscilações ontológicas em Frege ou Brentano.

Na verdade, eu não suportava mais ouvir falar os nomes de Cohen, Husserl e Brentano.

Eu queria mais era fugir dali.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escrevo numa manhã chuvosa de terça-feira.

Acordei com dores nas juntas e articulações.

Ouço Chopin.

Chopin é para as manhãs silenciosas e para os dias de chuva.

Tento organizar as minhas memórias nesse caderno surrado que encontrei em minha biblioteca.

Não sou especialista em Chopin.

Comprei esse CD, quando ainda não era aluno de mestrado do departamento de altos estudos daquela universidade.

Ouço também quase todas as manhãs Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Johnni Mathis.

Há pouco ouvi Wagner.

Nietzsche apaixonou-se por Wagner e depois o atacou, mas Wagner eleva-se de um silêncio ensurdecedor aos píncaros da glória.

Músicas clássicas estimulam a nossa memória.

Mas nada agora me assoma daquelas aulas do departamento de altos estudos.

Forcejo uma lembrança.

A lembrança me escapa.

Sobre a mesa os dois tomos de língua grega e outro de gramática latina.

Agora parece tocar um allegro.

Alegro-me!

A memória insiste em fugir.

A memória de vez foge-me.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cumpri com tranquilidade as duas primeiras disciplinas, que eram exigência para um aluno especial como eu do departamento de altos estudos daquela universidade.

Fiz um trabalho sobre os cardeais no renascimento que todos para a minha surpresa aplaudiram e outro sobre a oralidade em Platão, mas escrito.

No outro semestre, tive aulas sobre Heidegger.

Eram aulas com muitas citações em alemão: Dasein, Sein, Grund, Abgrund...

Mas o que mais eu ouvia era Dasein, Dasein, Dasein, Dasein... 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tínhamos uma professora simpática que carregava além de seu CV na Alemanha num autor que tinha feito parte do partido nazista uma angústia não propriamente heideggeriana, mais nos parecia uma angústia de um amor não correspondido.

Posso dizer que era uma professora bastante afável com os seus alunos.

Não economizava esforços em sua deferência comigo.

Percebia em suas aulas que lhe armavam alguma tramoia, uma esparrela que viríamos saber mais tarde com a sua destituição como Docente Titular do Departamento de Altos Estudos daquela ínclita universidade.

Até hoje, suspeita-se sobre o urdidor daquela esparrela que a jogou, pelo pouco que se sabe, num degredo jamais recuperado.

Sobre as suas aulas, posso dizer que eram do tipo coloquial, não obstante o peso das citações germânicas.

Creio que nenhum de nós entendia com aquele cipoal de citações o que ela dizia.

Posso dizer ainda que se Heidegger nos fora difícil de entender, a sua simpatia e apego aos alunos superava toda expectativa ruim.

Percebia que lhe pesava o arrependimento por ter preterido Eros por um estudo sobre um autor difícil que se dedicara ao isolamento na Floresta Negra a pensar como dizimar judeus e trair os seus mestres.

O arrependimento parece que lhe vincara o seu rosto de mulher abandonada e infeliz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fiz poucos amigos na universidade.

Todos, na verdade, estavam em busca de suas realizações pessoais.

Todos tinham em seus Curriculum Vitae formações acadêmicas um tanto quanto sólidas, não obstante notar falhas intrínsecas como em todo especialista.

Mas eu não queria ser um especialista.

Eu queria era ter um curso de mestrado em meu Curriculum Vitae para jogar nas caras daqueles filisteus que julgavam não haver vida inteligente fora da academia.

 

 

 

 

Logo percebi que a academia é o lugar perfeito da submissão; do logro, da falsidade e do verniz intelectual, onde todos arrogam conhecimentos profundos, sem tê-los na essência.

Um dos colegas de mestrado havia estudado quatro anos na Alemanha, mas não chegava a impressionar; outro havia se especializado em Nietzsche, mas me parecia bastante atrapalhado em suas exposições nos seminários.

Nas aulas do professor B, havia alunos saídos da graduação.

Pareciam-me alunos arrivistas com uma tendência a especializar-se em verdadeiros puxa-sacos; e foi numa dessas aulas do professor B. que eu me dei mal; uma porque esse professor B. não nos queria como seus alunos.

Ele, como se pode dizer, já tinha os seus vassalos e nós éramos tratados como um dos seus mais baixos ronins.

Não era incomum esse professor B. em suas aulas fechar-se em copas e discursar numa linguagem hermética conceitos e filósofos que só os seus vassalos entendiam ou fingiam entender.

Dei-me mal também, porque em uma determinada aula quis participar envolvendo-me com aqueles temas arcanos que só um débil mental poderia entender.

Mesmo assim resistia às vaidades egocêntricas daqueles vassalos que pensavam ser maiores que Kant, Nietzsche ou Schopenhauer.

As minhas aulas com o professor B e seus asseclas tornaram-se além de ininteligíveis também insuportáveis; e eu resistia àquelas três horas de um monólogo indecifrável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Recebi um e-mail informando-me sobre um curso de iniciação de língua grega. Eu na época já possuía alguns rudimentos de inglês, francês e espanhol que não dava nem para dizer good morning or bonsoir, mas desconhecia a língua dos helenos. De chofre, interessei-me pelo curso.

Fui até o endereço indicado: Mosteiro de São Bento, lugar aparentemente inacessível a um laico como eu. Pensei comigo: devo encontrar pessoas rezando no genuflexório. Apertei a campainha. Uma senhora de meia idade muito solícita me atendeu. Perguntei sobre o curso. Disse-me para entrar. Pé ante pé entrei. Fui até a secretaria. Na outra semana eu já estava estudando desinências, quadros de flexão e temas em alpha, ômega e bétha. No começo não entendia nada. O nosso professor parecia ser um pouco mais jovem do que eu. Era um tipo tímido e macambúzio e de raras palavras. Escrevia aquelas letras estranhas que eu um laico procurava de forma canhestra imitar. Éramos se muito uns quinze alunos. Isso no início, porque depois variava de cinco a sete, incluindo eu, que apesar de não faltar, pouco compreendia. Aquele professor macambúzio falava de casos como um açougueiro fala de carniça. E eu tentava dissimular a minha ignorância movendo a cabeça na forma de compreensão de um em um minuto. E eu me perguntava: o que tinha feito na vida para tanto pecar assim? Fato é que o genuflexório não estava distante para fazer as minhas prédicas. Mas eu na solidão do isolamento do mosteiro como um tenor por dentro gritava! Vae, helena glotta!

 

 

Agora eu era também, além de aluno de mestrado em filosofia, um estulto estudante da língua dos helenos; e eu nem imaginava que àquele inferno imaginário, eu agregaria outro tédio quase maior do que as aulas de grego. Além de não entender as aulas de nosso professor, que mais parecia ensinar para si, eu também não entendia como pude aos quarenta e três anos chegar a uma situação daquela. Eu que fora tempos atrás um libertino, frequentando tabernas, boates e inferninhos e saído com moças dissimuladas nos antros e serralhos daquela cidade. Já não possuía dinheiro, fruto de um casamento terminado, agora também já não possuía amigos, amigas, família nem mulheres. O tédio e a depressão me consumiam. A minha glicemia a cada dia mais se elevava; e eu estava prestes também a me tornar um dos mais novos empreendedores falidos exercendo as funções de um goliardo.

 

 

Recordo-me que jamais faltara uma aula, mas naquele dia resolvi ficar lendo na praça. Visitei sebos e livrarias. Sentei num banco da praça e comecei a chorar. Estava resolvido a abandonar tudo. Em tudo em que eu tentava me apoiar eu não tinha apoio. Fui ficando depressivo. Os meus amigos eram os livros, a minha cama insone e mais nada. Como se não bastasse, a minha família não compreendia a minha inaptidão para querer ganhar dinheiro. Eu tinha um pesadelo cristão do pecado. As brigas em minhas parcas relações se adensavam, e os meus amigos já desenvolviam suas estranhas teses com nomes mais estranhos ainda. E eu além de perder um trabalho sobre o Romantismo Alemão, tomava um zero histórico por querer mimetizar em meu trabalho as escritas tortuosas de Adorno ou Walter Benjamin.

 

 

Já era agosto e o calendário avançava e os prazos que eu perdia também. Assim, malogrei em propor um projeto sobre Charles Baudelaire. Malogrei em pleitear uma bolsa no Brasil ou em outro país como Alemanha ou França. Meus amigos passavam correndo por mim preocupados com suas teses. A minha orientadora me abandonou. A minha única saída era uma bússola que indicava o caos ou o abismo para os próximos dias; e eu como um náufrago a seguia.

 

 

Não posso negar que tive aulas interessantes. O que é interessante na universidade é o contato entre alunos e professores e o estímulo muitas vezes competitivo ao estudo. Tive ótimas aulas sobre Adorno, Platão, Aristóteles, Heidegger e Walter Benjamin. Walter Benjamin é um filósofo que me despertava interesse. Walter Benjamin foi desprezado pela família e pelos seus supostos amigos em vida. Passou os horrores da perseguição nazista. Suicidou-se, sem ainda encontrar o seu corpo fugindo da perseguição nazista. Tive também aulas sobre Brentano e Husserl que foram as melhores aulas a que eu pude assistir naquela universidade, embora não saiba uma linha até hoje sobre o que eles pensavam. De fato, não há maior glória do que ser um especialista em um autor que escreve num jargão que nem ele mesmo entende.

 

 

Nas aulas da professora G., eu tive aulas sobre os estoicos. A professora G. ao contrário do professor B. tinha os seus asseclas, mas era raro fazer um solilóquio tão enfadonho em suas aulas. A professora G., aos primeiros olhos, parecia-nos simpática, além de bonita. Mas atrás daquela simpatia escondia-se uma empáfia nada agradável. A professora G. não era nada parcimoniosa também nas suas citações de um pequeno arrazoado de expressões gregas. Hoje, só tenho vagas lembranças de suas aulas que pareciam um torvelinho que girava como a terra em torno do sol numa elíptica cujos sóis eram, lógos, lógos, lógos, lógoi, nómos, nómos, nómos nómoi. Do que agora também me recordo é a preferência que ela dava a um doutorando careca especialista nas diatribes de Nietzsche, que na verdade era um careca especialista bem atrapalhado, ao me recordar de suas hesitações e inseguranças de nossos seminários. Depois vim a saber que a professora G. não era uma sumidade na língua dos helenos e que adquiriu aquele parco vocabulário só para poder nos impressionar.

 

 

Se as aulas da professora G. eram tediosas com suas parcas expressões helênicas; as tardes de quartas-feiras com o professor B. eram como se um ateu fosse à missa assistir a uma homilia interminável. Só que o Deus dessa tediosa homilia era um dia o Deus um tal de Trendelenburg; no outro, um Deus com nome de sacerdote: Cohen. Sem citar no Zeus maior de nome Brentano e seus semideuses asseclas coroinhas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fomos obrigados a fazer um seminário. O encontro foi marcado numa paróquia, já que aquele nosso colega tímido, jovem e comedido era padre daquela paróquia. Lembro que era um sábado. Quando cheguei, fui bem recebido pelo santo padre. Dirigi-me até os fundos. Lá chegando, encetamos algumas conversas, enquanto esperávamos os cortesãos atrasados de sempre.

Ao final, não fizemos o trabalho. Então, ficou decidido antes que os demais mestrandos e doutorandos esvaziassem as garrafas com toda a cerveja e o sangue do porto que cada um faria o seu. Só sei que deve ter faltado vinho e hóstia para a comunhão do outro domingo.

 

 

Em meio àquele torvelinho, passei a engendrar uma saída; uma válvula de escape. Mas os anos corriam, e eu ia a cada dia me afastando mais de meus colegas de mestrado. Comecei a andar como um andarilho. Ia até a universidade, mas me sentia um pós-moderno goliardo. Evitava encontrar certos colegas que já tinham desenvolvido grande parte de suas teses. Alguns me perguntavam da data de minha defesa e eu tergiversava. Na verdade, nem eu sabia muito bem de meu abismo labiríntico. Muitas vezes, caímos num abismo e não sabemos mesmo o porquê.

 

 

Visitava livrarias, sebos e a cada dia me angustiava, sem, no entanto, abandonar as aulas enfadonhas de grego. Nas aulas de grego, havia também um tipo de afinidade do nosso professor macambúzio com certos alunos escolhidos por ele. Comecei a sentir-me mais uma vez enjeitado, um tipo de paranoia acadêmica. Mas mesmo assim concluí o semestre com louvor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entendia pouco na verdade de toda aquela doida sintaxe grega; sujeito sem posicionamento, verbos ora oscilando entre o meio e o final com acusativos confundidos com nominativos. Ficava perplexo com a evolução de um colega, que já distava algumas jardas e pés de todos nós. Percebia que essa afinidade se aguçava entre aquele nosso professor com aquele aluno dileto, a ponto de fazerem discussões acerca de um anafórico ou catafórico. Percebi também que esse aluno recebia aulas particulares do professor nos dias da semana e que ele estava sendo indicado para desenvolver uma tradução no futuro sobre Aristóteles e Platão, que me intrigou. O fato é que eu já não conseguia acompanhar mais as aulas do professor macambúzio, já que ele encetara um desenvolvimento além dos meus limites. Procurei me atualizar de todas as formas e maneiras. Pesquisei em livros, sites e outras mídias. Tinha receio de perguntar ao professor, porque poderia insinuar que eu não tinha a capacidade e os pré-requisitos exigidos para compreender aquela língua que só os grandes sábios poderiam compreender.

 

 

Iniciei o outro semestre com pouca disposição. Já havia praticamente sucumbido ao curso de mestrado e agora também sucumbiria às aulas de grego. Dinheiro já não tinha; amigos muito menos. Nesse outro semestre as coisas começaram a se aclarar. Mas mesmo assim eu tinha certa dificuldade. Exercitava que nem um louco nos finais de semana, sem, no entanto, compreender aquele novelo ininteligível. Lembro-me que também outro aluno fora escolhido por aquele professor. Outros chegaram a abandonar o curso sem concluir qualquer semestre. Mas eu resistia e queria compreender. Mas as dificuldades sem um orientador eram imensas. Comentava, nas poucas conversas que tinha com o nosso lente, que estava perdendo um curso de mestrado, onde ele iniciara certos professores nos rudimentos do grego; e lacônico ele me dizia que eu tinha que me submeter àqueles professores, se eu efetivamente desejava o título de mestre. Aventou sinalizar-me para ser também um dos seus diletos, no que percebeu o meu não interesse; vindo a abandonar-me posteriormente.

 

 

Evoluí pouco, mas evoluí. Iniciei o terceiro semestre sem muito entusiasmo. Tinha parcos, poucos amigos. É vaidosa e falsa a amizade acadêmica. As pessoas mal chegam e pouco se cumprimentam. Todos ou quase todos estão sempre num ponto de inflexão que os levará a outro lugar. Estão sempre com pressa. Naquele semestre, por esforço próprio consegui acompanhar alguns textos em tradução bilíngue. Cheguei a ler fragmentos de Aristóteles e Platão. Entusiasmava-me com a pequena evolução. Os alunos rareavam, a ponto de sermos três ou quatro alunos na sala, mais a presença de nosso macambúzio professor, que fugia de discussões que não eram relativas ao seu trabalho. Percebi então que possuía uma cultura de especialista rudimentar. Pareceu-me conhecer pouco de outros assuntos contemporâneos e o pouco que conhecia não convencia. Escondia-se como os tantos outros colegas de mestrado e doutorado atrás do status quo que vernizava as rupestres paredes de suas falsas culturas.

 

 

De uma maneira ou outra, bem ou mal, cumpri com certo louvor o curso de três semestres. Mas resolvi participar, com o beneplácito de nosso professor, da oficina de tradução, que não era outra coisa que o prosseguimento do outro curso. Procurava acompanhar as traduções do professor, que vinham sempre prontas. Certa vez, desconfiei de sua capacidade em traduzir direto do grego sem o socorro desses programas tradutores, mas declinei dessa minha suspeita. Cheguei a me aproximar mais, por uma força natural, de meus colegas, mas sem que tivéssemos tanta intimidade. Consegui pela benevolência de nosso professor ter acesso a alguns textos bilíngues, que me ajudaram no meu esforço em tentar compreender a língua de Aristóteles. Mas a evolução se fazia lenta. Tinha abandonado de vez o curso de mestrado, embora o prazo não tivesse ainda se expirado. Nas raríssimas vezes que eu ia à universidade, eu sentia um misto de ódio e de torpor e ao mesmo tempo uma vontade de retomar os meus estudos. Minha cabeça mais e mais se confundia. Agora, eu podia também fazer algumas citações de grego, latim e alemão, porquanto havia cursado também naqueles tempos de mosteiro a língua dos latinos e feito um semestre de alemão. Agora eu também podia despejar um punhado de frases feitas das línguas de Platão, Cicero e Goethe. Eu queria jogar na cara daqueles cortesãos incompetentes todo o meu arrazoado de grego, falar das elisões, vocalizações, dos encontros consonantais etc. Mas a cada dia eu me abandonava e queria de tudo aquilo fugir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São dez horas da manhã. Ouço Wagner e Bizet. E eu enquanto ouço as Valquírias me pergunto: por que queremos entender sobre tudo nessa vida? Somos escravos de nossos desejos. Somos, como diria Deleuze, essas máquinas desejantes. Por que não nos desvencilhamos de nossas armadilhas? Por que preferimos uma prisão segura a uma aventura no vazio? Continuo ouvindo Wagner. Recordo-me de minhas aulas como aluno de mestrado de Filosofia. Subo e desço a íngreme rampa da livraria. Folheio alguns livros. Resolvo ir-me embora. O meu pensamento voa; cavalga com as Valquírias.

 

 

Havia uma tensão entre os colegas; principalmente naquele colega que havia esgotado todo aquele vinho da sacristia. Os demais pareciam menos tensos que aquele colega; sobretudo o padre carola; talvez por ter rogado aos anjos para que eu não colocasse tudo a perder. Eu portava umas sete ou oito folhas de sulfite brancas. Percebi um sorriso de desconfiança de meu professor de altos estudos do renascimento. Disse boa noite a todos. Sentei-me. De repente, um silêncio.

 

 

Acordo com dores no braço. Procuro resistir aos achaques do tempo. Mas a memória ainda sobrevive. Nunca fui um especialista. O meu grande erro foi querer tornar-me um especialista.

 

 

No ano seguinte, tornei-me professor de Filosofia. Reflito e perco as minhas memórias. O tempo passava e eu me perdia pouco a pouco. Resolvi editar um blog. E isso foi decisivo para eu não me imiscuir numa tarefa que no fundo nunca desejei. Já perdia o mestrado; amigos, dinheiro e a estima. O blog tornou-se então o meu confessionário.

 

 

Antes de frequentar as aulas do professor B., que era praticamente, como já foi relatado, constituídas de alunos imberbes e com apanágios vassalais, eu já houvera frequentado as aulas de outro professor que vou designar como professor álpha. O professor álpha gostava de exibir um blaser bem ajustado ao seu corpo com calças de jeans alternando-as com outro tipo de calça que não conseguia identificar. O professor álpha costumava também usar um relógio que se destacava no pulso esquerdo. De todos os professores, o professor álpha era o que mais me parecia não pertencer àquela comunidade. O corpo discente que assistia às suas aulas parecia ter pendor às coisas germânicas. Até a sala onde os alunos de distribuíam parecia um auditório vermelho onde se erigiam os conceitos megalômanos da estética da destruição. As aulas giravam praticamente em torno de Fichte, numa filosofia de eus e não-eus, um filósofo indecifrável, confuso e preconceituoso. Não era nada incomum em suas aulas as elaborações de conceitos mirabolantes eivados de uma transcendentalidade só superável mesmo por Kant.

 

 

Com o tempo a memória vai se esgarçando e as lembranças vão se tornando rarefeitas e caindo no esquecimento. O que seria o homem sem a memória? Mas o que seria do homem com uma memória sem um mínimo de esquecimento? Forcejo pequenas gelosias de minhas renitentes memórias e nada me assoma a não ser os mesmos momentos de um eterno retorno que se fixou no porão de minha existência e que não me deixa esquecer. Relembro agora do nosso professor B. no centro como um sol e seus asseclas como numa elipse transladando pelo seu entorno e eu como um satélite deslocado procurando pelo meu centro e mais uma vez me perdendo.

 

 

Foi num dia subsequente ao meu ingresso como aluno de mestrado do departamento de altos estudos em filosofia que a minha caixa de e-mail superou o seu limite e quase estourou. Recebi convites para estudar inglês, francês, hebraico, grego, sânscrito e latim. Fui convidado também a encaminhar o meu CV para inúmeras universidades brasileiras com o pomposo chamado de senhor ínclito mestrando. De repente, eu era um lente mestrando de Filosofia. Desde aquele dia senti uma imensa vontade de colocar um anel no meu dedo anular e anular de vez todo o meu passado. Aventei um cartão de visitas com os seguintes dizeres: Dr. Goliardo Mellitus, Mestrando em Altos Estudos de Filosofia (não cobra por haveres).

 

 

Foi numa aula de Teoria do Conhecimento do professor B. que eu tive aquele insight. O professor B. discursava para os seus asseclas quando de repente virou-se para mim e fez de chofre uma empírica pergunta. Respondi que não concordava com o que dizia. Seus asseclas voltaram-se todos contra mim dizendo-me que eu nada entendia de Teoria do Conhecimento, empirismo, muito menos de filosofia. Tentei arguir, redarguir e defender-me. Senti-me jogado nas cordas como um lutador quebrado e estourado até os miolos. Mas mesmo assim resisti. Comecei a tremer. Tive inúmeras sudoreses. Saquei de uma pergunta e a sala inteira quase me expulsou por aquele disparate. Procurei um disfarce. O professor B ria, enquanto que eu na lona resistia. Continuei defendendo-me solitário. Para todos eu parecia o maior otário da filosofia. O professor B. ria e eu jogado na lona, mesmo assim resistia.

 

 

Muitos mestrandos e doutorandos, na verdade, não tinham nenhum projeto de qualidade para desenvolver. Os projetos invariavelmente jamais se opunham à especialização do orientador. Desenvolvia-se qualquer tese no escopo de obter o título honorífico de mestre ou doutor. Presenciei inúmeros alunos mais preocupados com a obtenção de status, do que propriamente com a tese em si.

O que pude perceber é que essas teses acabam causando ansiedades de todos os matizes. Há o medo da não conclusão. Por isso, escreve-se em favor da vontade do corpo docente. Normalmente são temas com apanágios inócuos que nada acrescentam no sentido de proporem uma grande transformação copernicana. São na maioria das vezes esforços análogos aos dos alpinistas que se deprimem com as suas escaladas ao olharem do promontório as suas não hasteadas bandeiras.

 

 

Depois que abandonei o mestrado em filosofia, tento escrever em vão esse diário. Posso dizer que não tive filhos. Tenho 63 anos e sou professor de filosofia do ensino médio. Todos os dias exceto nos finais de semana acerto o meu relógio para acordar logo pela manhã. Às 5h50 já estou de pé. Levanto, tomo o meu banho, preparo o meu café e dirijo-me à escola. Às 7h00, já estou na sala de aula. É nesse interregno de tempo que revivo fragmentos de minha vida. Nasci no ano de 1960. Ano em que o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou Brasília. Não possuo recordações dos meus primeiros anos de vida. Estamos no ano 2023 e John Locke parece-me ainda bastante contemporâneo. Não chego a dizer que sou um empirista arraigado, mas ancoro-me em sua tabula rasa para justificar essa amnésia de meus primeiros anos. As recordações que me assomam são esparsas e não se constituem como um sistema organizado e hegeliano. Escrevo num dia plúmbeo de uma tarde melancólica. É véspera de eleição para a presidência da República de meu país. Estou em minha residência. O tempo se dilui e me confunde. Ligo e desligo a TV. Ao meu lado, livros que tento ler. Neste exato momento toca a campainha de casa. Minha esposa foi atender. Aqui no sofá tento rememorar fatos de minha vida. Tento dar sentido às coisas que me rodeiam. Sobre a mesa uma agenda vazia. Zapeio a TV. Minha esposa retorna. Zapeio mais uma vez a TV. Um pastor ensandece o seu público. Zapeio a TV. A memória mais uma vez me escapa. Cochilo. Já não consigo organizar-me cronologicamente, para contar fatos de minha vida. A memória mais uma vez falha. Faço um esforço além de meus desgastados neurônios. Tenho pequenas lembranças. Lembro-me de um dia chuvoso de 1965. Lembro de uma tarde chuvosa. Lembro que eu olhava pela janela. Lembro de peras castigadas pelo temporal. A memória mais uma vez me escapa. Há saltos em minha memória. Agora relembro o dia de ontem. As lembranças embaraçam-me. O sono domina a minha memória. Acordo depois de um pequeno cochilo. Ponho-me mais uma vez a pensar. Por que algumas coisas ficam-me marcadas na lembrança e outras não? Por exemplo, lembro-me agora de um avião que sobrevoava a minha casa; e eu mais uma vez me pergunto: por quê; tenho um leve bloqueio; intuo uma possível disfunção; imediatamente agarro-me à memória; a memória mais uma vez me escapa. Dou um leve cochilo. Acordei tarde. Acordei sonolento. Sinal de pequenos pesadelos advindos possivelmente de uma disfunção hiperglicêmica. Minha mulher neste exato momento tenta consertar uma torneira que insiste em vazar. Pede-me para ir até o vizinho para solicitar-lhe um alicate. Recalcitro o pedido, mas cedo. Como se não bastasse, a nossa cachorra sangra como uma mulher menstruada, por conta de alguma patologia. Volto do vizinho sem o alicate. O sono me assoma. Somo a tudo isso uma leve depressão passageira. Sinto o cheiro de arroz queimado. Irrito-me com a possibilidade de um possível incêndio. Cochilo. Checo mais de uma vez a torneira do gás. Talvez sejam os primeiros sinais de toc. Vou à minha biblioteca e folheio alguns livros. Lá mesmo na biblioteca cochilo. Já passa do meio-dia e ainda não fui votar. Quero livrar-me rapidamente dessa obrigação "democrática". Antes, porém, danço com Raquel. Há dias de felicidade no amor. Depois da dança, subo as escadas de minha casa. Dirijo-me à minha biblioteca. Folheio alguns livros. Mas nada no momento me interessa. Cochilo. Fui há pouco levar Bonny para um passeio. À tarde, fiz a minha pequena sesta. Antes havia votado no colégio. Passo rapidamente na casa de minha mãe. Almoço macarrão e peixe. Recebo de meu irmão uma seleta de Ivan Junqueira. Leio alguns florilégios. Leio páginas esparsas de Negócios e Ócios de Boris Fausto. Leio sobre os  Sefaradis. No livro ficamos sabendo que “um judeu não podia montar um animal nobre como o cavalo e só podia dispor de um ridículo burrico". Boris ainda informa em seu belo livro que " para não ser confundido com a massa dos crentes, (o judeu) devia trazer uma rodela amarela sobre o peito, um turbante amarelo e um cinto de franjas."  Anuncia-se na TV a vitória do novo presidente. Sinto uma mistura de esperança, solidão e acedia. Ontem, não tive paciência para as especulações políticas da TV. Estou farto de especialistas. Projetam possíveis escândalos e alianças. Não aguentei e fui dormir. Bonny pede-me carinho. Saio com Bonny pelas ruas. Sento no banco da Praça. Dia azulado. Bonny é minha companheira. Bonny esparrama-se na grama. Bonny ama a natureza. Eu amo Bonny. Eu acho que eu e Bonny nos amamos. Retorno para casa. Olho para o relógio. O que é o tempo? O tempo é onde me encontro? O tempo haverá sem mim? Cachorros latem lá fora e cortam o silêncio melancólico da noite. São 20h38 de um dia qualquer. O tempo escorre ou sou eu que escorro pelo tempo? Já passa da meia-noite. A pequena melancolia da noite anterior já se dissipou. Torno a ter outra melankholé aristotélica. Dirijo-me à minha biblioteca. Olho os livros. Desisto de Platão em benefício de Sebald. Leio trechos de Paul Bereyter. Já são 7h00 e nem percebi o sono que me adveio na noite anterior. Não passei das primeiras páginas d' Os Emigrantes de Sebald. Olho-me no espelho. Olho mais uma vez no espelho. Tomo coragem para enfrentar mais um dia. Aulas enfadonhas de filosofia. Descartes. Aristóteles. Kant. Mas quem se interessa? A preguiça me invade. Coloco na mochila Coetzee e Murakami. Encontro-me em minha biblioteca. Há uma algaravia de escritos. Leio textos que seriam possíveis ensaios ou anotações de ensaios. Tudo resultou, por fim, nesse amontoado desconexo. Leio texto por texto. Não há uma ordem cronológica. Tudo isso já denota os primeiros sintomas de minha quase afasia. Insisto na memória. Lembro as aulas com o professor B. Aulas enfadonhas. Lembro de seus asseclas. Uma nuvem turva o meu olho. Hoje não fui lecionar. Pensei em ir ao centro revisitar antigas livrarias, mas praticamente não saí de casa. Levei R. ao trabalho. Levei alguns papeis à lixeira. Fui ao mecânico. Entro no Facebook. Publico as mesmas mensagens. Ninguém lê as minhas mensagens. Escrevo para ninguém. É o tédio. Ouço fatos. Percebo que envelheço a cada dia. Adormeço. Não me recordo da data exata de meu abandono acadêmico. As coisas acontecem nas entranhas de nossas vidas e não nos apercebemos. É como se olhássemos para os ponteiros dos relógios que marcam os minutos e as horas e os segundos correndo ledos. Sei que me afastei totalmente das aulas. Desliguei-me também das poucas amizades que tinha. Amizades falsas é verdade. Amizades superficiais que só buscavam o status. Digiro as minhas angústias fazendo essas minhas poucas memórias que a velhice ainda um pouco me concede. Quantas vezes eu não fico pensando que eu poderia ser um pós-doutor em filosofia, sem ter feito, como tantos, uma tese que preste. São seis horas da manhã. Olho-me no espelho. Tomo coragem para enfrentar mais um dia. Leio poemas de Kaváfis. A preguiça me invade. Coloco Coetzee e Murakami na mochila. Mas uma nova ruga, uma flor de espinho, pulula em meu rosto apagando de vez as minhas esparsas, voláteis e frustradas  memórias e  recordações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acordo, aniversário dessa louca cidade.

Antes de qualquer lembrança, queria dizer que nasci nessa megalópole de pedra, onde todos os povos e nações se encontram.

Terra da garoa dos antigos tempos.

Terra dos conflitos, da inveja, da arrogância, dos crimes, dos medos, assassinatos, estupros, genocídios, parricídios, máfias, corrupção, afetos e desafetos, roubos, amor, atrocidades, conluios, igrejas, igrejinhas, panelas e panelinhas, indiferença, arte, trânsito, burocracia, escultura, arquitetura, cinza, beleza, picassos, piches, muros, painéis, periferias, antropofagia, elites, pobres, grafites, antigrafites, urbanos murais, masp, paulista, augusta, sebos, rock, samba, pagode, universidades, políticas, misérias, dores, sabres e sabores, whatsaap, pastéis na feira, artesanatos, sociólogos, filósofos e antropólogos, empurra empurra no metrô, licenciamento e linchamento, pequeno burguês, excremento e cimento, brigas, motoboys, tráfegos, tráficos, marginais, vinte e cinco de março e muito mais, falsos padres messiânicos, encontros e desencontros, pão com manteiga na padaria, visita aos sábados na casa da tia, carros estressados e blindados, ciúme, traição, engodo, esfolados pelas emboscadas da riqueza, filas imensas, aparências, violência grotesca, vontade de chegar e de ir embora, vontade de ficar e perder a hora, de não permanecer e sonhar, cidade de pichar e gritar escondido no banheiro: Salvem de vez esse pardieiro!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ano 2020

Com pequenas revisões e alterações pelo autor.

 

 

 

 

 

 

 

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