O SIMULACRO DO FUTURO - FRAGMENTOS DESSE TEXTO FORAM PUBLICADOS NA REVISTA COYOTE NÚMERO 8

 



1

sim, monsenhor... 
sou de aquário... 
o que me possibilitou, 
depois de centenas e centenas de pirronistas, 
que tentaram me desconsiderar por todos esses anos,

aceder ao fechamento de um silogismo, 
que eu já desconfiava,

desde quando daqui deste pináculo ou como queira o monsenhor,

daqui deste outeiro, 
que diz respeito à minha genialidade, 
assegurar-lhe nesse momento,

que acabo por definir e dar por acabado um conceito que veio há anos aturdindo 
a todos da população...

2

sim, monsenhor...

não desconsidere o fato 
de haver muitos canalhas nesta cidade...

o fato de haver muitos canalhas nesta cidade, 
não impedirá de maneira alguma

que eu lhe relate esse conceito antediluviano 
que viemos perquerindo

ou até mesmo 
tentando 
encontrar 

bojo de sua saliência...

acresce-se ainda, monsenhor...
que não obstante

a minha genialidade,

devo confessar-lhe como se deu tal episódio...

3

mas antes, monsenhor...
devo informar-lhe que nesta cidade há muitos canalhas...

sim, monsenhor, foi o fato de haver muitos canalhas nesta cidade,

que me induziu à inserção 
neste processo sistemático 
de ensimesmamento,

o que me possibilitou 
como já relatei

ao assentimento dessa ideia, 
que agora 
denota a minha genialidade,

ratificando de modo cabal e epistemológico

o meu axioma...
que no entanto 
não deverá surpreendê-lo,

por se tratar 
na verdade, 
de um pleonasmo tautológico...

4

a verdade, monsenhor...

a verdade 
está a dois palmos 
de nossas retinas...

mas não posso desdenhar o fato 
de eu ser de aquário, monsenhor...
para eu ter chegado 
a esse paradigma...

não sei, monsenhor...
como o conceituei 
e como cheguei ao limiar 
de 
uma 
conclusão perene 
e que julgo satisfatória...

talvez seja o fato 
de minha concepção 
ter se dado provavelmente em meados de maio, monsenhor... quando as flores restabeleciam 
o seu viço e as sebes ornamentavam o asfalto com seus juncos...

5

mas o fato, monsenhor...
o fato é que a verdade 
veio à tona...

a verdade 
que estava a dois palmos de nossas narinas...
não que essa verdade 
viria a ser descoberta 
por quaisquer cânones...

não, monsenhor... 
a verdade veio 
de forma intuitiva...

que apesar 
da minha genialidade, monsenhor...

não poderia 
eu julgá-la, 
tal como bergson a teria julgado...

mas posso considerar que essa minha 
tal genialidade, monsenhor...
seja um mix de ilação e intuitividade...

e o fato, monsenhor...
de haver muitos canalhas, 
nesta cidade, não me impediu 
de chegar a esse desparadoxo...

6

não foi, monsenhor...
a fenomenologia 
que me levou...

não, monsenhor...

nem, contudo shakespeare 
ou la rochefoucauld

nem mesmo qualquer aforismo 
ingênuo e tolo que me levou...

sim, monsenhor...
foi um jogo...

talvez um pecado 
pelos cânones 
estabelecidos...

talvez tenha sido 
um impulso 
pré-lógico...

talvez, monsenhor...
um impulso natural

a verdade, monsenhor...
é que tal fato 
deu-se em meados 
de fevereiro... quando 
todos estupefatavam-se 
com essas danças esquisitas...

7

não julgue tal fato 
um absurdo, 
monsenhor... e não desconsidere 
que o fato de termos muitos canalhas 
nesta cidade é o que me fez 
pensar em silêncio...

não foi no intuito de um potlatch, monsenhor...
que canalizei e dissipei toda minha energia...

não, monsenhor... não deve haver tolerância 
quando se asculta o significado das coisas...

e a verdade, monsenhor... é que o meu juízo 
está ratificado em todos os seus aspectos eloquentes...

8

eu, monsenhor... jamais olvidaria qualquer 
aspecto que diferisse de minha metodologia...
a não ser o fato empírico das incoerências 
inolvidáveis... não pense, monsenhor...
que esta verdade resida em aspectos singulares, 
já que me encontro nesse círculo adiante...

9

devo também lhe informar, 
monsenhor... desse aspecto...

esse fato, monsenhor...
não deve ser arguido...

os canalhas desta cidade 
não devem ser refratários 
quanto a essas premissas, 
às quais me referi...

10

pois bem, monsenhor,,,
necessito contar-lhe 
como tudo ocorreu...

11

sim, monsenhor...
eu estava distraído observando 
um felino nefelibata, quando me deparei 
com essa antinomia... aí pensei: acabo por definir 
tal antinomia... é simples: posso muito bem defini-la 
e superá-la por uma razão simples, já que me encontro nessa situação que me permite de forma empírica aplicar toda a teorética até então consagrada... se posso, monsenhor... desta forma estabelecer e consagrar algo que vem sendo perquerido há séculos, posso também julgar-me um gênio dentre muitos canalhas que residem nesta cidade...

12

e aí, monsenhor...
estabeleci algumas regras, 
mas vi que toda metodologia empregada 
ia me desviando dos conceitos estabelecidos...
aí então retornei ao puro silogismo 
que, apesar de simples, deu-me todo o substrato 
para a canonização desse conceito...

13

eu, monsenhor... confesso que fiquei perplexo, 
quando percebi que o julgamento 
que eu fazia, era mais simples do que eu pensava... 
e aí pensei: será que outros aquarianos como eu 
tiveram esses mesmos insigths, quando muitos desta cidade, sobretudo os canalhas, dançavam uma dança esquisita....

14

ah, monsenhor... não julgue depois que eu lhe relatar esse insight, que tal desvelamento seja um verdadeiro ovo de colombo...

não, monsenhor... os ovos de colombos só funcionam 
quando se quebra a casca que os envolve...

sim, monsenhor... muitos dirão: mas se trata 
de um verdadeiro ovo de colombo...

15

sabe, monsenhor... não negaceio o desejo que em mim se instaura neste momento...

o desejo tem comichões inescrutáveis... 
gostaria já de chofre lhe dizer como tudo ocorreu...
mas vou boderjando pelas encostas, sem saber 
com convicção se esse relato estará muito bem consagrado...

16

mas, monsenhor... retornemos...
quando, monsenhor... lhe digo: retornemos...
já quase lhe atiro um fio condutor, 
entretanto, monsenhor... um aquariano nesta minha condição de genialidade só poderá na verdade retornar... já que esse retorno induz, ao menos em sua sutilidade, o que passo logo a lhe relatar...

17

sei, monsenhor... que muitos neste momento 
julgam-me orgulhoso, ardiloso e tudo mais.... 
mas esse conceito emergiu mais em função 
de um mourão estático no qual todos se apoiam...

18

sim, monsenhor...
eu estava com as duas palmas apoiando 
o meu queixo...

era um devaneio...
um simples devaneio...

na verdade, 
eu não pensava em nada...

mas me perguntei: 
como posso não pensar em nada...
já que pensar em nada, 
significaria algum pensar...

na realidade 
eu 
pensava algo...

aí, monsenhor...

eu repensei 
e repensei 
e lembrei

que há muitos canalhas 
nessa cidade...

mas desdenhei 
tal 
fato

porque 
pensar 
é ficar 
doente 
do pensamento...

alguém já disse isso
alguma 
vez...

mas 
não sei se pensava 
ou não pensava...

eu 
despensava 
na verdade...

as minhas mãos 
como 
aquele 
mourão

e o meu queixo 
nelas apoiado...


eu 
pensava 

despensava...

e aí disse para mim mesmo:

sou...

sim...

devo admitir 
tal verdade...

sim,

sou 
um 
gênio...

mas aí pensei:

mas e a humildade...
mas ao mesmo tempo pensei: 
sou um gênio...

sim, descobri...

19

não, monsenhor... 
eu não seria um gênio, se fosse o que o senhor está pensando....

só eu, monsenhor...
um aquariano, 
poderia chegar 
a esse desvelamento...

20

e foi quando eu apoiava 
sobre as minhas mãos o meu queixo que pendia...
que eu disse:

heureca! 
heureca! 
heureca!

sim, eu o vislumbro, ou melhor: eu sinto o seu odor...

21

eu não sabia, monsenhor...
que ele tinha odor...

é um odor fétido, monsenhor...

é um odor que se espraia...
que se dissemina...

jamais pensei em minha vida que seria através de minhas narinas a descoberta...
o desvelamento....

22

então sucedeu, monsenhor...
que 
toda a descoberta 
passava 
pelas minhas narinas...

e eu, 
monsenhor...
sentia o seu cheiro...


eu perguntava-me:

como eu, 
um tosco aquariano, 
que não sabia que era um gênio, 
vim aportar aqui...

que nau ou saveiro me trouxe... 
não me lembro...
não me lembro...


eu 
ainda 
me perguntava:

como 
aqui 
vim 
fundear....

qual 
quilha...

qual embarcação...

qual vento...

qual 
leste 
ou 
oeste...

qual correnteza...

qual 
maresia...

qual veleiro...

será que posso retornar...

já não tenho noção do tempo... 
o tempo aqui 
se quebra como os leves 
cristais... e eu, monsenhor...
ansioso, olhava para 
a frente, mas eu não enxergava nada...


eu 
perguntava:

então seria isso...

fiquei desconsolado...

einstein naturalmente tinha nos iludido... 
einstein fora um impostor... 
que os muros 
dos 
tártaros 
desabassem 
sobre 
a cabeça 
de einstein...

23
e eu, monsenhor...
solitário, 
lá naquele escuro,

eu chorava...

sim, monsenhor...
eu pedia socorro 
a einstein, 
mas einstein não me ouvia...

eu não suportava mais o odor... 
eu queria retornar...

mas lembrei-me dos canalhas da cidade...

24

então fiquei indeciso...
como seria o meu retorno... 
eu tinha perdido 
a noção do tempo...

o tempo 
tinha se partido...

à minha 
frente mais nada...

eu podia voltar...

é concedido a um aquariano o retorno...

será que é concedido...

mas voltar pra quê....

mas ficar pra quê também...

25

então, monsenhor...
embrenhei-me 
nessa 
triste aporia...

mas 
se eu 
já 
me 
encontrava 
lá...

restava-me 

consolo 
ou 

regozijo...

mas einstein havia mentido:

E=mc2...

não... 
eu não compreendia nada daquilo...

nada...

nada...

nada...

26

einstein 
naturalmente 
havia 
mentido...

aí, monsenhor...
eu 
comecei a chorar...

eu chorava 
copiosamente...

era uma torrente de lágrimas...

lágrimas de alegria por aportar naquele navio...
mas mesmo com as lágrimas eu via, monsenhor...

eu 
via dali muitos 
mendigos....

eu via a fome, 
monsenhor...

eu via a penúria arrebatando
de forma repelente...

eu via a agrura 
que se deitava 
naquele horizonte...

mas lá não havia horizonte...
lá era o fim e o começo, monsenhor...

mas eu via nitidamente...
eu me escorava em meu próprio corpo...

eu, um aquariano, sozinho...
e eu me escorava...

eu 
queria 
retornar...

mas 
não podia retornar, monsenhor...

era lá, monsenhor...
eu havia chegado...

eu e minha genialidade...

27

eu 
não 
estava só, 
monsenhor...

eu 
estava 
acompanhado...

eu palmilhava 
ponto 
por 
ponto...

eu 
queria 
conhecer 
a sua estrutura...

eu queria conhecer o seu solo...

eu havia chegado...

eu sei que um filósofo 
já dissera 
que 
ele 
dura muito tempo...

mas eu havia chegado...

28

procurei 
adaptar-me 
àquele odor, 
monsenhor...

donde vinha aquele odor...

eu me perguntava...

29

eu sozinho lá, 
só 
me perguntava...

30

sim, 
monsenhor...
confesso 
que 
me 
decepcionei...

zanguei-me 
por uns instantes...

aventei 
um 
caminhar...

mas eu não podia 
mais caminhar...

lá era o limite...

só me restava o retorno...

mas 
como 
retornar...

por 
quais 
atalhos...

por 
quais 
caminhos...

mas eu precisava retornar...

não...

eu não queria mais estar ...

eu queria retornar....

pensei todas a formas de retorno...

mas era isso que eu queria?...

mas 
era 
isso 
que 
a humanidade 
queria?...
aquele odor...?

31

era só isso...

tantos ensaios...

tantos...

tantos...

tantos...

então era aquilo...

oh, 
também 
althusser 
estava 
errado...

não...
não...

althusser estava errado...
lembro-me daquela frase 
no quadro negro...

mas 
eu 
estava 
lá...

eu 
tinha 
chegado...

einstein: E=MC2...

não podia ser...

32

sim, monsenhor...
sou de aquário...


eu 
ensimesmado...

querendo 
retornar...

eu 
tinha 
fechado 
todo 

silogismo, 
monsenhor...

agora eu era um gênio absoluto...

sim, monsenhor...

eu era um gênio absoluto...

sim, monsenhor...

esse era o meu vezo...

eu, 
que todos julgavam 
um 
tosco 
aquariano, 
nascido 
nesta cidade de bárbaros...

33

então eu, 
um aquariano 
tinha chegado....

34

e eu via...

eu via 
a maldade 
com os 
dois punhos 
cerrados...

eu via 
a inveja 
que 
forcejava 
uma janela 
escura...

eu via 
os 
perdulários 
malsinando 
uns 
aos 
outros...


eu 
perguntava...

não...

eu já não perguntava...

como eu poderia 
perguntar 
para 
mim mesmo...

eu 
que 
tanto 
me 
perguntava...

e eu me embaraçava...

eu 
me perdia...

como pode um aquariano 
se perder...

mas eu me perdia...
eu me confundia...

35

mas eu via a barbárie...
eu via a fome...
de lá eu podia 
enxergar...

eu via midas 
perdido 
num 
labirinto...

midas 
cravejado 
de ouro 

diamantes...

sobre 
o dorso 
de midas 
um 
rubi 
encarnado...

eu via leopold bloom...

eu via tudo...

uma leve brisa doce 
soprava 
por 
sobre 
as cabeças nuas 
num cochicho...

eu via uma terra parda úmida...

sim ...

eu via duas vestais de dublin...

eu havia chegado...

36

não...

lá não era o paraíso...

fomos enganados...

fomos ludibriados...
lá não era o paraíso, monsenhor...

37

como pude pisar 
em 
solo 
tão 
estranho...

meu jeito estouvado 
de 
aquariano 
se 
perdia 
naquela 
imensidão...

38

todos ririam de mim...

todos... todos... todos...

eu, um aquariano que ousou chegar aonde 
não se chega...

eu tinha ido 
contra 

lei 
da gravidade...

eu flanava de um lado 
pro outro...

39

sim, monsenhor...
os canalhas desta cidade, 
na certa ririam de mim...

ririam da minha derrelição...

eu um homem sem horizonte 
que capengava naquele solo...

eu, desamparado....

40

mas 
eu 
havia 
chegado...

eu via 
a deusa fama 
baldeando 
de 
valeta 
em 
valeta...

a deusa fama 
vestida 
de 
azeviche...

eu 
fazia 

minha 
doxologia...

mas qual deus 
me 
escutava...

meu rito era inócuo...
eu sucumbia sobre a planície 
da desilusão...

41

aí, monsenhor...
a chuva começou a cair...
caía em pingos ralos...
pingos tênues...

procurei me quedar 
em 
qualquer 
ancoradouro, monsenhor...

de 
repente 
um dilúvio...

os raios se 
espatifavam 
sobre as
crateras 
labirínticas...

ventos 
se 
convergiam 
num 
vulcão...

redemoinhos 
de 
fogo 
acendiam 

ascendiam 
aos 
céus...

torvelinhos 
de 
esperança 
abatidos 
sob 

tacão 
perpétuo 
da 
maldade...

chovia, monsenhor...

42

um 
pássaro 
gigante 
sobrevoava 
sobre 

minha 
cabeça...


eu
suportando 
todo 
aquele 
solo 
pedregoso...

43

subitamente 
começou 

trovejar...

assustei-me 
mais 
ainda, monsenhor...

um 
aquariano 
da 
minha 
estirpe 
sem 
jaça
tem 
medo...

assustei-me 
com 

trovejar...

pendiam 
pétalas 
de 
poesia 
naquele 
mar 
de 
fogo...

mar 
ígneo 
onde 
brotava 
uma 
pétala 
de 
rosa...

mas 
logo 

mar 
se 
encrespou 


céu 
irou 
as 
suas 
vísceras...

o mar e o céu unidos por um só desejo...

44

eu já não entendia mais nada, monsenhor...
eu ouvia a algaravia dos silêncios...
fiquei com medo, monsenhor... muito medo...

eu, 
monsenhor...

sozinho naquele solo pedregoso....
fiquei com medo....

45

um cérbero latia ao fundo...
com ondas variegadas meu cérebro sucumbia... 
tive 
um leve desmaio...
mas logo me avistei inteiriço....

46


eu 
me 
perguntava, monsenhor...

como 
pode 
um 
aquariano 
da minha 
estirpe 
ter 
chegado 
naquelas 
paragens...

47

mas depois da trovoada 
o sol 
se plantou...
aquele sol parecia 
um 
dândi 
com seus raios esféricos 
e escaldantes...

48

a chuva intimidou-se...
mas 
logo 
o plúmbeo das nuvens desceu entre os álamos das cordilheiras....

e eu me afeiçoei aos álamos...
e eu 
me afeiçoei às cordilheiras...

sentei, monsenhor, e comecei a chorar....

49

cérbero, atento, ouvia os meus lamentos...
o plúmbeo chumbo derretia e esfacelava- 
se sobre os montículos espessos...

acintosamente 
vários dutos entrelaçaram-se formando uma espiral elíptica...

por sobre aqueles dutos 
erigiu-se 
um degredo 
de gelo caucasiano...

pelos 
dutos transcorria uma água gélida ...

50

um vento tépido varreu os cabelos encaracolados e frouxos da harmonia...

51

e cérbero...
eu vi, monsenhor....
eu 
vi 
cérbero postado como a um guarda 
da realeza...

não 
sei, monsenhor, 

quem 
cérbero protegia...

porque lá era um vasto povoado de tédio e vazio...

52

não, monsenhor, não se tratava do hades ou do inferno...

não, 
monsenhor, 
não 
se tratava 
também 
do 
firmamento...

nem tampouco, monsenhor...

do purgatório....

53

não, 
monsenhor...
um aquariano da minha etnia, 
jamais conheceria 
o cáucaso de perto...

54

não monsenhor, 
dante 
já havia nos mostrado 
todos 
os seus círculos 
com seus hóspedes 
e inóspedes...

55

eu, 
um 
aquariano 
tosco, 
monsenhor, 
caminhava 
sobre 
aqueles
páramos 
sem beatriz 
ou qualquer outra vestal...

56

sim, monsenhor...
eu vi as vestais de dublin...

57

mas caminhava sozinho...

58
o charco se apoderava das lídimas correntezas... 
o arco-íris 
despertava nos interstícios das gelosias...
um abajur fulvo observava as suas saliências...
os livros repletos de ácaros aguardavam por um leitor voraz...
o sol repelia a chuva...
eu recebia encomendas de paris...

59

vinham versos bem concatenados por uma poetisa em degredo...

60

a poetisa deitava-se sobre os versos da saudade 
e arpejava seu peito qual uma lira...

61

a poetisa em degredo chorava lágrimas de poesia...
seus versos emocionavam o poeta...
a poetisa resgatava o seu amor perdido através das palavras...

62

as palavras salvam, monsenhor...
as palavras salvam...

63

mas, monsenhor...
eu não estava a salvo... 
eu, lá naquele labirinto, estava sem palavras...
as 
palavras escorriam no sumidouro do esquecimento...

64

letra por letra ia se desajustando...
as frases já não se concatenavam... 
e os canalhas da cidade aguardando um ditirambo qualquer...
os canalhas queriam qualquer coisa...
mas 
não havia palavras...
as palavras já não expressavam mais nada...
as palavras não representavam mais nada...
letras eram trocadas... 
parecia uma dislexia...

65

aí que não se compreendia mais nada...
não havia mais linguagem...
tudo era muito incompreensível...
os 
hermeneutas 
postavam suas cabeças nos incunábulos...
mas os incunábulos eram indecifráveis...

66

uma tristeza se abatia sobre mim...

67

de repente o tédio...
a solidão...

68


eu ia palmilhando aquele solo pedregoso...
aguardava uma ligação qualquer...
mas não havia sinais...
eram nove horas da manhã... 
sim, monsenhor...
lá eram nove horas da manhã...
era um fuso preciso...

69

um ato falho apoderou-se de mim...
eu 
agarrava-me à memória tentando escapar daquele pesadelo...
minha memória fraquejava...

70

de repente o silêncio...
ao fundo um ruído...
não, monsenhor, não era uma nota musical...
era 
um ruído, monsenhor... 
sim, 
monsenhor, 
eram 
vários ruídos...

não, monsenhor, 
não se agrupavam 
em notas musicais...

71

aí pensei, monsenhor:.
deve ser schönberg...
deve ser varèse ...

72

deve ser...
não...
não...
não deve ser...

73


porta 
abriu-se 
de 
chofre...

passos 
nas 
escadas...

silêncio...

outro passo...

pelo 
postigo alguém 
espiava...

ouvi uma outra voz...
não, 
monsenhor...

eu 
não 
estava 
mais 
sozinho...

quem estaria comigo, monsenhor...

74

as nuvens se adensavam no céu...
eu ouvia espasmos...
agora alguém subia a escada... 
outra 
dislexia...
aí 
pensei, 
monsenhor...
ela vem chegando...
vem 
sorrateira...
a passos lentos, monsenhor...
ela 
vem chegando...
ela 
vem pontuando o meu corpo...
ela vem anunciando...

75

uma turbina estremecia os meus tímpanos...
eu já não compreendia mais nada...
outro passo...
mais um...
uma cortina sacudida...

76

agora um diálogo...
pés nas escadas...
o diálogo se estende...
panegíricos 
de um lado a outro...
uma admoestação...
o vazio...

desesperança... 
eu ia captando tudo, 
monsenhor...
mas eu sentia medo....

77

ser um aquariano é terrível, monsenhor...
qual a sua lua, 
monsenhor...
não monsenhor, não mo diga...
não mo diga....

78


diálogo num crescendo... 
ao fundo um uníssono...
uma queda...
uma leve queda...

79

nove e dezessete, monsenhor, 
e o pesadelo não passava...
o tempo originário revelou-se...
cheguei 
ao 
limite 
do percurso...
eu precisava voltar...
a tontura que se seguiu era uma grande revelação...

80

recaída 

recuperação...

81

história com final feliz...

82

uma voz....

83

tonitruante....

84

meu batismo.....

85

minha prima tonsura....

86

palavras 
jogadas 
ao 
léu...

palavras 
sem sentido...

palavras...
palavras...
palavras...

87

e os canalhas, monsenhor...
os 
canalhas 
ririam...

todos 
canalhas 
ririam, 
monsenhor...

mas 
eu não me deixei abater...

segui jornada adentro...

88

fui 
caminhando...

avistei 
um detento sentado em praça pública...
mercadejava 
seus signos...

um escriba funéreo o acompanhava....

89

gentis homens, 
monsenhor...

eu os via de forma translúcida... 
um véu de neblina cobria-lhes as faces....

90

a multidão caminhava desesperadamente...
os carros alçavam as suas sirenes...
ambulantes 
num 
alvoroço...
mendigavam 
espórtulas 
mendigavam moedas...
vinténs....
mendigavam pão...

91

a cicuta 
milimetricamente 
sorvida...

92

livros...
jornais...
badulaques 
à 
mancheia...
música 
em 
excesso...
abundância...
desperdício...
padres 
nas praças...
messiânicos com seus cantochões...

93

circenses com línguas de fogo...
labaredas 
nos 
cruzamentos...

helicópteros 
sobrevoando 
os 
heliportos...

stress...
tensão...
bílis... 
ódio...
malversação...
anseios gratuitos...
pactos...
desordens...
assassinatos...

94

seqüestros...
injúrias...
difamação... 
dinheiro...
ouro...
piruetas...
extorsões....
amabilidades secretas...
sofistas decadentes...

95

rio 
caudoloso...
labirintite...
pressões 
desarticuladas...
lágrimas...
vestígios... 
arruaças...
dízimos...
moedas...
moedas...
moedas...
gincanas...
espermas 
contaminados...
exibições 
gratuitas...
quinze minutos...
menos...
muito menos...

96

um minuto...
nada...
nada...

97

revolucionários...

98

utópicos...

99

caleidoscópio...
vertigem...
atores mambembes...
saraus...
cantos...
festas...
ágora...
parlamentos...
agora... 
já...
daqui a pouco...
um 
instante, 
por 
favor...
não...
eu 
quero 
agora...
agora...
já...
imediatamente...
balas.... 
molotovs...
favelas...
samba...
cachaça...

100

vazio...

101

vazio...
vazio...
vazio...

102

buraco negro...
buraco...negro....

103

choupana...
messkirch...

104

novolin 70/30...

105

alaíde... 
ataúde...

106

alaúde....
starlix....
cho....cho...cho...
biografemas....

107

música...
saudade

vai 
voltar...

eu nada vou dizer...

desculpa se eu chorar...

108

ramal 245...
ramal 236... 
ramal 239...

109

o gato como uma estátua...

110

heidegger...
islã...
benjamin...

111

buraco 
negro...
choupos...
cachopas...
buraco 
negro...
dormir...
conluios...
falsas 
cordialidades...
pequenas desavenças...

olhar 
despercebido...

mão 
na nuca... 
diálogos 
frugais...
dieta....
dependências... 
buraco negro...

112

o mercador...
e-mail...
buraco negro...

113

e eu ali , monsenhor...
e o tédio se apoderando de mim... 
eu 
ouvia vozes, monsenhor...
uma 
música 
indecifrável ao fundo... 
os prédios... 
revirava-me 
no 
leito 
da 
aflição...
as 
encostas 
perfuradas 
de desespero...
reminiscências...
óstracos...
a voz do poeta...
o poeta erigido num azulejo...
o poeta de black-tie....

114

dez 
para 
as três...

o fuso preciso...
mais portas...
calendários...
livros 
empilhados...
varal 
esvoaçando...
rota 
de ícaros...
cidade 
se 
verticalizando...
esporro...
raiva

gula...
destemperança... 
gráfico 
glicêmico...
perfurar o lóbulo...
não perfurar...
mais uma refrega ganha... 
eludir 
todo 
pensamento 
nefasto...
bravatas 
no ar...
revival...

eterno 
retorno...
nietzsche...
pop...
o esconso...
o guardado sob o véu...
a resistência.... 
cioran...
ter 
suprimento no bornal das idéias... 
de que adianta....

115

de que adianta, monsenhor....

116

duas e cinquenta e sete...
eram duas e cinquenta e sete...

117

já não eram mais...

118

o fuso impreciso...

119

nada mais era....

120

o sumidouro... 
o sorvedouro...

121

a barba por fazer... 
espelho... 
ducha... 
motores turbinados... 
a dieta... 
o rigor... 
a luta com o imponderável... 
o exercício....

122

e eu palmilhava as suas jardas... 
as suas medidas...
a areia na ampulheta... 
o tempo medido... 
o fuso preciso...

123

eu palmilhava, monsenhor....

124

eu, 
um 
aquariano...
o décimo primeiro signo do zodíaco...

125

o fuso preciso... 
rato no chinês...

126

todos ririam de mim, monsenhor...
todos... 
todos... 
todos..

mas eu palmilhava.....

127

09 de março...
o fuso difuso ...
o fuso impreciso...
imprecisão...

idéias suicidas...
lâminas...
estiletes...
morfina benjaminiana...

o medo do infinito...
labilidade de pensamentos...

resgate...
curvas...
parábolas
afetos...
desafetos...
retrospectiva...
perdas e danos...
saldo equitativo...
protelação dos fatos...
vale a pena...
não vale a pena...
procura do detalhe...
deus está no detalhe...
procura do detalhe...
cama...
cama...
cama...
pensamento...
despensamento...
toca o telefone...
o rescaldo atende...
tudo bem...
uma leve depressão...
dias renovados...
o fio de esperança... 
primeiras palavras...
strasse...
bild....
strand...
mutter...
vater...
ich...
spiel...
lieben....
aber... 
logos
eti
gar
arsenico
o buraco negro...
vazio...
o medo do infinito...

128

o medo do infinito....

129

o medo do infinito...

130

o medo do infinito...

131

o medo...

132

infinito...

133

infinito...

infinito....

sim, monsenhor...
esse é o meu vezo:

o futuro...

sim, monsenhor...

o futuro dura muito tempo...

mas é uma merda... monsenhor....
uma merda...

sim, monsenhor, eu lhe garanto ...

eu, monsenhor...
um aquariano, concebido em meados de maio, 
quando as flores restabeleciam o seu viço e as sebes
ornamentavam o asfalto com seu juncos...

sim, monsenhor, eu lhe afirmo:

o futuro é uma
merda... uma merda...

mas não durará muito tempo 
nas mãos dos canalhas desta cidade...


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