INSIGHTS, SINAPSES E FOTOGRAMAS

Wilson Luques Costa Ver Perfil

Insights, Sinapses e Fotogramas

O ano é provavelmente 1926. O lugar é a Província de Córdoba. Dois agricultores. Um, mais velho, dois filhos: Mercedes, com 11 anos e Rafael com 9; o outro, um jovem, solteiro, beirando os 23. Fazem uma aposta por um motivo tolo. 1927 Francisco, o mais velho, falsifica a idade de Mercedes e de Rafael para a viagem. 1928 Pegam o paquete para o Brasil. Terra de silvícolas em suas mentes. Em São Paulo, comemoram-se, timidamente, os seis anos da Semana da Arte Moderna. 1938 Nasce Carmem, a mais velha das meninas do casal Mercedes e Francisco. 1928 Dias e mais dias vendo o azul do Atlântico. Vômitos. Sono. Preguiça. Tédio. 1971 Nasce Adriana, filha primogênita de Nelson. Nasce de 9 meses. Mas dizem 5, 6, 4. Só para salvaguardar o Escândalo. 1949 Chapada Diamantina. Lugar diamantífero. A riqueza escoa. Edvald, bom moço, neto de Onofre Meira da Costa, coronel de insígnias e vetusto mulherengo, parte para São Paulo. Estação do Brás. Nozinho antes lhe avisara: “Não se abestalhe em procurar guarida em Lucélia”. “Tios, donos de cartório, mas metidos a bestas. Liam em inglês no almoço só para humilhar os Gonçalves”. Edvald, com dois ´d´ mudos, um na certa nobiliárquico, obedece. Olha os prédios da cidade grande. Mas não se avexa com a sua grandeza. Em Lençóis, no Largo da Matriz, os alto-falantes tocavam blues e jazz. As galinhas defecavam pelas ruas diamantes. Nozinho empanturrava-se de mulheres. Nasceu para ser garimpeiro não rico, dizia. Falava-se de Horácio de Matos. Muitos o temiam, outros o amavam. Falava-se dos Mosquitos. Dos judeus, árabes, espanhóis. Do cosmopolitismo de Lençóis. Da moda que chegava antes. Das elegantes beldades. Mas Nozinho não era condescendente com Edvald. Queria que aprendesse uma profissão. Principalmente magistrado ou alfaiate. Queria que fizesse estudos. 1988 Sueli encontra o amor de sua vida. Ele é tímido e caminhoneiro. Ela é bonita, já foi gorda, magra, companheira e nervosa. Casou-se aos 33 anos. Viveu feliz por 17 anos. Até que um câncer lhe corroesse a vida antes das traições do marido tímido e mulherengo. Morreu de morte ou de amor. Não se sabe. Ou de ambos. 1970 Havia poucos televisores no Brasil, mas Mercedes e Francisco tinham um. Preto e branco. Mercedes fora pespontadeira. Trabalhava em casa, enquanto Carmem, com ´m ´, cuidava de Nelson e Sueli. Francisco trabalhava na Light e no Parque Xangai. Francisco era casmurro com a família e galhofeiro com os amigos. O país passava por uma ditadura militar sem precedentes. Estudantes morriam torturados. Morriam pela liberdade. Morriam pela justiça. Morriam. Com um gol de Rivelino, Riva, a patada atômica, o Brasil vence os Tchecos. Jairzinho se benze. Os estudantes também se benzem em seus esconderijos ou sob a baioneta dos militares. O menino na poltrona em paralaxe assiste à vitória do Brasil. Edvald embriaga-se pelas ruas de São Paulo. Nas ruas, bandeirinhas de Volpi, comemoram o triunfo do Brasil. Ruas repletas de crianças e de soldados. 1978/1980 Pelo que se sabe, Nelson gostava de história. Mas não era comunista. Antes, desconhecia o comunismo. Mas estudou, enquanto deu, em um colégio particular. Nelson não leu provavelmente Marx nem Weber. Nelson não sabia o que era um lumpemproletário. Mas as más línguas diziam que ele não gostava de trabalhar. Trabalhou pouco é verdade. Mas trabalhou. Trabalhou numa produção em série da Varietex. Trabalho por dois dias. E logo pensou em se aposentar. Mas não persuadiu os chefes nem a família. Levava o cognome de desgarrado do trabalho. Uma empresária pensou em lhe salvar a vida e matar a do marido. A empresária era casada. Melhor, mal casada. Queria lhe dar mesada em troca de umas fugidas sazonais. Mas Nelson vinha amando mais a cachaça do que Doralice. 1964 O menino tinha 4 anos. Era tímido e taciturno. Gostava de futebol e de brigar na rua. Não levava desaforo para a casa. Brigava todo dia. Era um bom menino. Todos diziam isso dele. Era o primogênito da avó Mercedes, que parecia recusar de início a pecha de avó. O menino era filho de baiano. O menino era híbrido. Mercedes não sabia o que era híbrido. Em 1964, não era de bom tom aos espanhóis ser híbrido. Espanhóis eram ou são preconceituosos. 1927 Francisco e Mercedes, em Córdoba, antes de pegarem o paquete mal se conheciam. 1930 Francisco e Mercedes e outros espanhóis vão para Sorocaba. Vão trabalhar na lavoura de café. 1939 A guerra explode. A menina de laço desobedece as palmadas da professora. Logo será expulsa. 1940 Na foto, a menina se destaca. Dentes alvos, grandes e lindos. Sorriso de atriz. Sorte de Edvald que não precisou ir a Hollywood. Ficou por ali mesmo sendo o Bogart da família. 1941 O menino é espivetado. É uma mistura de boy com anarquista. Quer viver a vida simplesmente. 1939 A guerra explode. O pai de Francisco faz um apagão em sua casa. Sua não. De toda a família, diziam alguns. Odeia Franco. Quem é esse tal de Franco? Os filhos desatentos perguntavam. Dizem que na família de Pacos, Franciscos e Chicos, algum Francisco era comunista. 1965 Arquimedes é jovem e metido a brigador de rua. Amália é bonita, quieta, vaidosa e pisciana. Dizem que a preferida de Mercedes das três irmãs. Adail, que falecerá cedo, ama Amália. Arquimedes que é briguento gosta de Amália e detesta Adail, nordestinos, comunistas e Edvald. Amália, pelo jeito, ama Arquimedes que é ciumento. Amália ama Arquimedes, mas não ama o seu temperamento. Amália dá um xeque-mate em Arquimedes. Arquimedes é valente e sensível ao amor. Saca de um 38 e desmaia no corredor. O menino socorre-lhe de imediato e espanta-se mais uma vez. 1972 Rua 15 de Novembro. Rua repleta de gente circulando. O pai foi ao centro por algum motivo especial. Levou o menino por injunção da mãe que já desconfiava de suas escapadelas. O Brasil Vence. O menino não sabe quem são os adversários. 1967 Bambolês nas cinturas das meninas. Marisa. Meire. Mirtes. Maria. Sueli. A rua, logo, logo, ganhará a sua primeira camada de asfalto e luz elétrica. Dois jogadores morrem na Marginal. O menino inocente chora no ombro da mãe. O menino vai à escola. O menino novamente chora. Agora a perda do amplexo da mãe. Num ano qualquer - Nelson vê televisão. Nacional Kid. Tarzã. Jim da Selva. Anos depois, Nelson terá a perna amputada e morrerá em seu quarto, sozinho, numa véspera de Páscoa. A mesa toda armada. O camburão demorou a chegar. Causa mortis ignorada. A moça de laço, sua irmã, mais precisamente Carmem com M maiúsculo e o menino choram eternamente. 1984 Francisco briga com Mercedes por causa das bebedeiras constantes de Nelson. No ano seguinte, Tancredo morrerá de sintomas suspeitos. Uma foto premeditada por uma junta médica. O Brasil se abre sob o tacão da mentira. Sem combinar com Tancredo – Francisco, pai de Nelson- morre do estômago. Caixão lacrado. Os médicos não quiseram abrir. 1968 Barricadas em Paris. O menino tem 8 anos. O Corinthians vence o Santos de Pelé com gol de Paulo Borges. Tabus são quebrados. O Brasil e uma parte do mundo comemoram. Década de 60 Edvald espanta a moça de laço. Bebe pela primeira vez. Tudo tem uma primeira vez. 1973 Armando está deitado. De repente, um grito. O sobrinho voa ao seu encontro. Gol de Tales. Corinthians 1 x 0 São Bento. 1982 O menino lê de tudo de forma desenfreada e anárquica. Argentinos e britânicos disputam as ilhas Malvinas. Sueli trabalha na Hikari. Aos sábados não larga da enceradeira. Impossível caminhar pelo vermelhão da casa. 1975 Verão. Chove torrencialmente. Pelo chão: amoras, ameixas, jabuticabas, peras. O sol desponta entre as bananeiras. Pardais sobrevoam pelo céu. Pipas e arraias multicoloridas. A Indonésia invade o Timor-Leste. O governo de Marrocos promove a invasão do Saara. Arco-íris na rua Corim. 1974 O Brasil perde da Polônia. Gol de Lato. Ademir da Guia fica no banco de reserva. Edvald é internado num manicômio de São Paulo, com surtos intermitentes causados pela euforia do álcool e do conhaque. Judite, dessa vez, consola Carmem. Foucault talvez estivesse escrevendo a História da Loucura. 1936 Início da Guerra Civil Espanhola. Francisco e Mercedes vão morar na Vila Esperança. A casa tem uma cerca e tem cabras. Carmem nascerá dois anos depois. Armando um ano antes. 1967 Numa família de Franciscos, Francisco, filho de Mercedes e irmã de Carmem, casa-se com a boa moça e alagoana Judite. Judite trabalha na Penha. Numa loja de tecidos. Mercedes rejeita Judite ou rejeita o nordeste. Mercedes rejeita Alagoas e Penedo em Judite. Ratifica-se: espanhóis foram ou são preconceituosos. Judite, em segredo, guarda um câncer que lhe matará anos mais tarde. Carmem gostava de Judite. O menino também. Francisco (Chico) enviúva. 1929 Quebra da bolsa de Nova York. Queima de sacas de café. Em 1930, Getúlio virá. Francisco e Mercedes estão há quatro anos longe de Córdoba. 1945 Armando não larga do cordonê nem do estirante. Dizem que parece um astronauta. É estrábico e sonhador. Anos mais tarde irá trabalhar para os Matarazzos. 1976 O Corinthians perde no Beira-Rio para o Internacional. A mãe sofre de alergias e de angústia pelo marido. O menino assiste ao vivo a ambas as derrotas. Década de 70 O velho Francisco, pai de Mercedes, morre do estômago. Não carregará mais confeitos nos bolsos. Não sairá mais com Terezoca escondido. Não sentará mais sob a mangueira. Não bolinará mais as mulheres bem ou mal casadas na feira. Nem causará escândalo, vexame, na família. Década de 60 Francisco, marido de Mercedes, vai na frente. Mercedes, Carmem e o menino vão um pouco atrás. Mercedes carrega uma sombrinha para se proteger do sol esturricante. Entram na Itinguçu. Destino: Estação Patriarca. Os demais vêm atrás. Avistam o tronco de longe. A cancela se fecha. A uma correria descomunal. O trem parte. Destino: estação quarta parada. Casa de tio Antonio. O tio espanhol legal. Vizinho de Ditão, o que levou o chapéu de Pelé. Mas na casa parece que não mora ninguém. O tio espanhol legal bebe demais. Tem Norma. Norma não casou. Parece casta. Armando bem que podia casar com Norma. O Corinthians joga. Outra derrota. Agora 4 x 1. Com três gols de Pelé, outra vez. Salames, mortadelas e queijos sobre a mesa enxadrezada. Mesmo assim todos comemoram a visita. O menino olha a mesa com água na boca Década de 60 Domingo. A vitrola está ligada. Meninos e meninas brincam na rua. Seu Zildo, o pipoqueiro, desce a rua. Toca na vitrola Sérgio Reis. Carmem anda angustiada. O menino também. Será que Edvald, de novo, vai beber? Década de 60 Rosa, a cunhada de Mercedes e esposa traída de Antonio, desce a Rua Corim, sem a camada de asfalto, com a sua sombrinha azul. Mercedes, lá de baixo, lhe avista. Tudo lembra um quadro de Renoir. 1961 Conforme a teoria de Jean Piaget, possivelmente naquele ano em que Jânio Quadros inexplicavelmente renunciou, o menino brincava com os móbiles da casa. Edvald e Carmem apresentavam-lhe as primeiras palavras: papai, mamãe, titia, titio, vovô, vovó... 1964 O menino encontra-se na segunda fase piagetiana. Abandono parcial de móbiles. Não compreende (ainda pelo incipiente estágio pré-operatório) o significado metafísico de alteridade. Nem o Brasil: bombas, perseguições, molotovs, torturas... Década de 70 Nelson e Armando vão ao Pacaembu. O menino fica em casa chorando. Nelson e Armando choram depois: Santo 4 X 1 Corinthians. Pelé e Edu deixaram os seus. Final da década de 70 A rua ilumina-se. Fogos de artifício. Os meninos jogam golzinho. Bancos e cadeiras nas calçadas. Pessoas confabulam. A noite não consegue jogar o seu manto. Década de 50 A moça trabalha numa fábrica. A avó não quer. Mas a moça quer. A moça até hoje não sabe quem foi Simone de Beauvoir. Na fábrica. No Belém. O patrão estúpido quase lhe destrói as pernas com um rolo de tecidos. A moça conta ao noivo. Pede, imediatamente, demissão. Dois anos depois se casa. A moça ainda não conhecia Simone de Beauvoir e até hoje nunca ouviu falar. Uma data qualquer Os meninos roubam as mangas de João Ré. Nadam na sua lagoa. Comem de suas ameixas. Batem em suas cabras. Escondem-se em suas matas. Trepam nas suas árvores. Bebem do seu leite. Também pudera. João Ré era um senhor feudal e nem sabia. 
MEMÓRIAS DA VILA RÉ 
A todos os meus amigos, avós, pais, familiares
Wilson Luques Costa

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