MEMÓRIAS VOLÁTEIS DO QUASE MESTRE DOUTOR GOLIARDO MELLITUS

 

Maldita a hora quando, naquela tarde, ele adentrou a sala. Lembro que era uma quarta-feira ensolarada e pelo reflexo do sol eram 16h30. Era uma figura exótica. Parecia ter, se muito, 45 ou 46 anos. Cumprimentou a todos sem fixar os olhos que se escondiam atrás de uns óculos rayban. Olhamo-nos uns aos outros sem saber muito bem quem era. Sentou-se na cadeira e sobre a mesa colocou livros e várias cópias de xérox. Lembro que me fixei num livro de filosofia em inglês. Tentei com o meu parco inglês traduzir o título daquele livro. De repente, ele começou a falar. Falava num solilóquio que até parecia que ninguém lhe ouvia. Estupefatos, olhávamos uns aos outros e nada compreendíamos. Citava Kant, Heidegger, palavras alemãs, só para dar um sabor especial àquele espetáculo. Alguns alunos ali pareciam estabelecer com ele um jogo de cartas marcadas. Aos poucos fomos percebendo que definitivamente não pertencíamos àquela família.  


Lembro que eu, um autodidata, estava resolvido a ingressar na academia. Eu caminhava na Avenida Vergueiro. Tinha passado todo o meu dia no Centro Cultural São Paulo. Comentei com um amigo: vou fazer mestrado na PUCSP. Eu, um ano atrás, já tinha feito uma especialização na USP. Há dois anos abandonado um mestrado em Educação pelos Salesianos, mas para um autodidata como eu, aquela etiqueta era ainda muito insuficiente. Já havia mestres, doutores, pós-doutores e eu ainda com aquela formação ridícula em jornalismo nos anos 80 feita nas coxas e sem o maior interesse por aquela universidade, ainda por cima, paga, particular e sem muito brilho, engolindo em meus ouvidos na viagem de trem que fazíamos os sibilantes trucos! trucos e trucos! Até parecíamos naqueles trens abarrotados de estudantes gados que caminhavam sem nenhum retorno para o matadouro, mas resolvi tentar. Eu precisava passar pelas grandes universidades. Meu colega assentiu com a cabeça e fez uma micagem com o lado esquerdo do sobrolho. 


Boa tarde!

A secretária fingiu que não me viu.

Boa tarde, senhora!

Pois não!

Sabe... meu nome é... e eu queria saber sobre o procedimento para a inscrição do curso de mestrado em filosofia...

O senhor se formou aqui?

Não... eu sou formado em jornalismo por outra...

Olha, moço, o prazo da inscrição vai até o dia...

O senhor tem que trazer esses documentos e pagar uma taxa no valor estipulado nessa folha...

Está tudo aí...

O senhor também tem que ler essa relação de livros afixada na parede...

O exame será daqui a duas semanas e pela sua formação o senhor não vai conseguir entrar direto, porque precisa formação em filosofia... não sei... eu se fosse o senhor... não sei...

Ok, moça!

Muito obrigado!


Eu tinha completado 36 anos e os pesadelos e as constantes idas noturnas ao banheiro já anunciavam: 444 de glicemia em jejum.

A partir de hoje, o senhor vai ter de se acostumar com essas variações e agulhas diárias!

Não entendi, doutor!

O senhor está diabético!

O que significa isso, doutor?

Significa dizer que o senhor vai ter que alterar os seus hábitos!

Quais hábitos, doutor?

Eu vou lhe passar esse regime que o senhor terá que seguir à risca.

Saiba o senhor que diabetes leva à cegueira, ao emagrecimento, à amputação das pernas e outros órgãos e problemas de todos os tipos e espécies...

Eu vou morrer, doutor?

Todos nós vamos morrer um dia!

Assim que saí do consultório, abracei-me a uma árvore e comecei a chorar.

Era o fim de tudo: 36 anos; livros apara escrever; cursos a fazer; livros para estudar; ter filhos; ter netos; realizar os infinitos sonhos que faltavam...

Pensei em fazer um testamento!

Mas do que e pra quem?  


Logo pela manhã, antes do desjejum, li no corpo da seringa: BDU - 100 INSULIN 1 ml/cc. Desde aquele dia que abracei a árvore e chorei era essa a minha rotina matutina. Eu já me acostumara com as picadas diárias em jejum; ainda sonolento, medi aproximadamente 24, fiz um bolinho de carne próximo ao umbigo e furei-me. Logo em seguida, tomei café com leite com algumas bolachas e fui trabalhar.


Assim que subi até o quarto andar eu percebi que havia algo de errado. Tudo aquilo parecia uma imensa fila do SUS. Da relação dos livros, já houvera lido, anos anteriores, a Microfísica do Poder e quase todos, mas sem a intenção de catalogar ou fichar. Li pelo deleite da leitura. Havia uma tensão no ar. Eu estava prestando exame na PUCSP. Lugar de resistência política, onde soldados torturaram estudantes, onde em seu teatro encenaram a obra máxima de João Cabral de Melo Neto. Recebi uma folha com um texto em inglês. Não levei dicionário. Quase todos portavam os seus dicionários. Concentrei-me e encetei a tradução. Era um texto sobre o filósofo inglês Bertrand Russel. Desenvolvi também um texto sobre algum tema filosófico. Assim que terminei o texto e a tradução fiz uma releitura e virei as folhas sobre a carteira. Já havia devorado uns três ou quatro chocolates e tido umas duas ou três hipoglicemias, seguidas de elevadas hiperglicemias, que me jogavam na lona; mas eu resistia como um lutador de MMA. Minha cara pálida, esfolada pela doença não me abatia. Eu precisava manter-me intacto. Mostrar rigidez, força, levantar-me do tatame, fingir que estava tudo bem, esconder as mãos trêmulas, ocultar o coração acelerado, a vertigem dos olhos, as dores nas pernas, as pontadas na cabeça, além do medo do desfalecimento momentâneo. Mas resisti. Tive suores novamente, confusão mental, bradicardia, taquicardia, medo, medo, medo, medo, síndromes do medo, medo, fome, vontade de urinar, tontura, vertigem, embaçamento dos olhos, sensação de ausência, de não estar, medo, medo, confusão mental, outra bradicardia seguida de taquicardia, síndromes do medo... Tudo ao mesmo tempo se sucedia. Nos poucos minutos de minha sanidade, compreendi que era para aguardar a chamada da entrevista. Todos... me indaguei, mas antes que indagasse um dos monitores já avisara: poucos serão os que herdarão os reinos dos céus ou do inferno!   



 

 

 

 

 



 

 


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