O SIMULACRO DO FUTURO
Foi esse texto que saiu publicado na Coyote número 8 em 2003. Só alguns fragmentos iniciais ocupando 4 páginas. Esse texto foi escrito de uma tacada. Usei o fluxo de consciência.
O SIMULACRO DO FUTURO
1
sim, monsenhor...
sou de aquário...
o que me possibilitou,
depois de centenas e centenas de pirronistas,
que tentaram me desconsiderar por todos esses anos,
aceder ao fechamento de um silogismo,
que eu já desconfiava,
desde quando daqui deste pináculo ou como queira o monsenhor,
daqui deste outeiro,
que diz respeito à minha genialidade,
assegurar-lhe nesse momento,
que acabo por definir e dar por acabado um conceito que veio há anos aturdindo
a todos da população...
2
sim, monsenhor...
não desconsidere o fato
de haver muitos canalhas nesta cidade...
o fato de haver muitos canalhas nesta cidade,
não impedirá de maneira alguma
que eu lhe relate esse conceito antediluviano
que viemos perquerindo
ou até mesmo
tentando
encontrar
o
bojo de sua saliência...
acresce-se ainda, monsenhor...
que não obstante
a minha genialidade,
devo confessar-lhe como se deu tal episódio...
3
mas antes, monsenhor...
devo informar-lhe que nesta cidade há muitos canalhas...
sim, monsenhor, foi o fato de haver muitos canalhas nesta cidade,
que me induziu à inserção
neste processo sistemático
de ensimesmamento,
o que me possibilitou
como já relatei
ao assentimento dessa ideia,
que agora
denota a minha genialidade,
ratificando de modo cabal e epistemológico
o meu axioma...
que no entanto
não deverá surpreendê-lo,
por se tratar
na verdade,
de um pleonasmo tautológico...
4
a verdade, monsenhor...
a verdade
está a dois palmos
de nossas retinas...
mas não posso desdenhar o fato
de eu ser de aquário, monsenhor...
para eu ter chegado
a esse paradigma...
não sei, monsenhor...
como o conceituei
e como cheguei ao limiar
de
uma
conclusão perene
e que julgo satisfatória...
talvez seja o fato
de minha concepção
ter se dado provavelmente em meados de maio, monsenhor... quando as flores restabeleciam
o seu viço e as sebes ornamentavam o asfalto com seus juncos...
5
mas o fato, monsenhor...
o fato é que a verdade
veio à tona...
a verdade
que estava a dois palmos de nossas narinas...
não que essa verdade
viria a ser descoberta
por quaisquer cânones...
não, monsenhor...
a verdade veio
de forma intuitiva...
que apesar
da minha genialidade, monsenhor...
não poderia
eu julgá-la,
tal como bergson a teria julgado...
mas posso considerar que essa minha
tal genialidade, monsenhor...
seja um mix de ilação e intuitividade...
e o fato, monsenhor...
de haver muitos canalhas,
nesta cidade, não me impediu
de chegar a esse desparadoxo...
6
não foi, monsenhor...
a fenomenologia
que me levou...
não, monsenhor...
nem, contudo shakespeare
ou la rochefoucauld
nem mesmo qualquer aforismo
ingênuo e tolo que me levou...
sim, monsenhor...
foi um jogo...
talvez um pecado
pelos cânones
estabelecidos...
talvez tenha sido
um impulso
pré-lógico...
talvez, monsenhor...
um impulso natural
a verdade, monsenhor...
é que tal fato
deu-se em meados
de fevereiro... quando
todos estupefatavam-se
com essas danças esquisitas...
7
não julgue tal fato
um absurdo,
monsenhor... e não desconsidere
que o fato de termos muitos canalhas
nesta cidade é o que me fez
pensar em silêncio...
não foi no intuito de um potlatch, monsenhor...
que canalizei e dissipei toda minha energia...
não, monsenhor... não deve haver tolerância
quando se asculta o significado das coisas...
e a verdade, monsenhor... é que o meu juízo
está ratificado em todos os seus aspectos eloquentes...
8
eu, monsenhor... jamais olvidaria qualquer
aspecto que diferisse de minha metodologia...
a não ser o fato empírico das incoerências
inolvidáveis... não pense, monsenhor...
que esta verdade resida em aspectos singulares,
já que me encontro nesse círculo adiante...
9
devo também lhe informar,
monsenhor... desse aspecto...
esse fato, monsenhor...
não deve ser arguido...
os canalhas desta cidade
não devem ser refratários
quanto a essas premissas,
às quais me referi...
10
pois bem, monsenhor,,,
necessito contar-lhe
como tudo ocorreu...
11
sim, monsenhor...
eu estava distraído observando
um felino nefelibata, quando me deparei
com essa antinomia... aí pensei: acabo por definir
tal antinomia... é simples: posso muito bem defini-la
e superá-la por uma razão simples, já que me encontro nessa situação que me permite de forma empírica aplicar toda a teorética até então consagrada... se posso, monsenhor... desta forma estabelecer e consagrar algo que vem sendo perquerido há séculos, posso também julgar-me um gênio dentre muitos canalhas que residem nesta cidade...
12
e aí, monsenhor...
estabeleci algumas regras,
mas vi que toda metodologia empregada
ia me desviando dos conceitos estabelecidos...
aí então retornei ao puro silogismo
que, apesar de simples, deu-me todo o substrato
para a canonização desse conceito...
13
eu, monsenhor... confesso que fiquei perplexo,
quando percebi que o julgamento
que eu fazia, era mais simples do que eu pensava...
e aí pensei: será que outros aquarianos como eu
tiveram esses mesmos insigths, quando muitos desta cidade, sobretudo os canalhas, dançavam uma dança esquisita....
14
ah, monsenhor... não julgue depois que eu lhe relatar esse insight, que tal desvelamento seja um verdadeiro ovo de colombo...
não, monsenhor... os ovos de colombos só funcionam
quando se quebra a casca que os envolve...
sim, monsenhor... muitos dirão: mas se trata
de um verdadeiro ovo de colombo...
15
sabe, monsenhor... não negaceio o desejo que em mim se instaura neste momento...
o desejo tem comichões inescrutáveis...
gostaria já de chofre lhe dizer como tudo ocorreu...
mas vou boderjando pelas encostas, sem saber
com convicção se esse relato estará muito bem consagrado...
16
mas, monsenhor... retornemos...
quando, monsenhor... lhe digo: retornemos...
já quase lhe atiro um fio condutor,
entretanto, monsenhor... um aquariano nesta minha condição de genialidade só poderá na verdade retornar... já que esse retorno induz, ao menos em sua sutilidade, o que passo logo a lhe relatar...
17
sei, monsenhor... que muitos neste momento
julgam-me orgulhoso, ardiloso e tudo mais....
mas esse conceito emergiu mais em função
de um mourão estático no qual todos se apoiam...
18
sim, monsenhor...
eu estava com as duas palmas apoiando
o meu queixo...
era um devaneio...
um simples devaneio...
na verdade,
eu não pensava em nada...
mas me perguntei:
como posso não pensar em nada...
já que pensar em nada,
significaria algum pensar...
na realidade
eu
pensava algo...
aí, monsenhor...
eu repensei
e repensei
e lembrei
que há muitos canalhas
nessa cidade...
mas desdenhei
tal
fato
porque
pensar
é ficar
doente
do pensamento...
alguém já disse isso
alguma
vez...
mas
não sei se pensava
ou não pensava...
eu
despensava
na verdade...
as minhas mãos
como
aquele
mourão
e o meu queixo
nelas apoiado...
e
eu
pensava
e
despensava...
e aí disse para mim mesmo:
sou...
sim...
devo admitir
tal verdade...
sim,
sou
um
gênio...
mas aí pensei:
mas e a humildade...
mas ao mesmo tempo pensei:
sou um gênio...
sim, descobri...
19
não, monsenhor...
eu não seria um gênio, se fosse o que o senhor está pensando....
só eu, monsenhor...
um aquariano,
poderia chegar
a esse desvelamento...
20
e foi quando eu apoiava
sobre as minhas mãos o meu queixo que pendia...
que eu disse:
heureca!
heureca!
heureca!
sim, eu o vislumbro, ou melhor: eu sinto o seu odor...
21
eu não sabia, monsenhor...
que ele tinha odor...
é um odor fétido, monsenhor...
é um odor que se espraia...
que se dissemina...
jamais pensei em minha vida que seria através de minhas narinas a descoberta...
o desvelamento....
22
então sucedeu, monsenhor...
que
toda a descoberta
passava
pelas minhas narinas...
e eu,
monsenhor...
sentia o seu cheiro...
e
eu perguntava-me:
como eu,
um tosco aquariano,
que não sabia que era um gênio,
vim aportar aqui...
que nau ou saveiro me trouxe...
não me lembro...
não me lembro...
e
eu
ainda
me perguntava:
como
aqui
vim
fundear....
qual
quilha...
qual embarcação...
qual vento...
qual
leste
ou
oeste...
qual correnteza...
qual
maresia...
qual veleiro...
será que posso retornar...
já não tenho noção do tempo...
o tempo aqui
se quebra como os leves
cristais... e eu, monsenhor...
ansioso, olhava para
a frente, mas eu não enxergava nada...
e
eu
perguntava:
então seria isso...
fiquei desconsolado...
einstein naturalmente tinha nos iludido...
einstein fora um impostor...
que os muros
dos
tártaros
desabassem
sobre
a cabeça
de einstein...
23
e eu, monsenhor...
solitário,
lá naquele escuro,
eu chorava...
sim, monsenhor...
eu pedia socorro
a einstein,
mas einstein não me ouvia...
eu não suportava mais o odor...
eu queria retornar...
mas lembrei-me dos canalhas da cidade...
24
então fiquei indeciso...
como seria o meu retorno...
eu tinha perdido
a noção do tempo...
o tempo
tinha se partido...
à minha
frente mais nada...
eu podia voltar...
é concedido a um aquariano o retorno...
será que é concedido...
mas voltar pra quê....
mas ficar pra quê também...
25
então, monsenhor...
embrenhei-me
nessa
triste aporia...
mas
se eu
já
me
encontrava
lá...
restava-me
o
consolo
ou
o
regozijo...
mas einstein havia mentido:
E=mc2...
não...
eu não compreendia nada daquilo...
nada...
nada...
nada...
26
einstein
naturalmente
havia
mentido...
aí, monsenhor...
eu
comecei a chorar...
eu chorava
copiosamente...
era uma torrente de lágrimas...
lágrimas de alegria por aportar naquele navio...
mas mesmo com as lágrimas eu via, monsenhor...
eu
via dali muitos
mendigos....
eu via a fome,
monsenhor...
eu via a penúria arrebatando
de forma repelente...
eu via a agrura
que se deitava
naquele horizonte...
mas lá não havia horizonte...
lá era o fim e o começo, monsenhor...
mas eu via nitidamente...
eu me escorava em meu próprio corpo...
eu, um aquariano, sozinho...
e eu me escorava...
eu
queria
retornar...
mas
não podia retornar, monsenhor...
era lá, monsenhor...
eu havia chegado...
eu e minha genialidade...
27
eu
não
estava só,
monsenhor...
eu
estava
acompanhado...
eu palmilhava
ponto
por
ponto...
eu
queria
conhecer
a sua estrutura...
eu queria conhecer o seu solo...
eu havia chegado...
eu sei que um filósofo
já dissera
que
ele
dura muito tempo...
mas eu havia chegado...
28
procurei
adaptar-me
àquele odor,
monsenhor...
donde vinha aquele odor...
eu me perguntava...
29
eu sozinho lá,
só
me perguntava...
30
sim,
monsenhor...
confesso
que
me
decepcionei...
zanguei-me
por uns instantes...
aventei
um
caminhar...
mas eu não podia
mais caminhar...
lá era o limite...
só me restava o retorno...
mas
como
retornar...
por
quais
atalhos...
por
quais
caminhos...
mas eu precisava retornar...
não...
eu não queria mais estar ...
eu queria retornar....
pensei todas a formas de retorno...
mas era isso que eu queria?...
mas
era
isso
que
a humanidade
queria?...
aquele odor...?
31
era só isso...
tantos ensaios...
tantos...
tantos...
tantos...
então era aquilo...
oh,
também
althusser
estava
errado...
não...
não...
althusser estava errado...
lembro-me daquela frase
no quadro negro...
mas
eu
estava
lá...
eu
tinha
chegado...
einstein: E=MC2...
não podia ser...
32
sim, monsenhor...
sou de aquário...
e
eu
ensimesmado...
e
querendo
retornar...
eu
tinha
fechado
todo
o
silogismo,
monsenhor...
agora eu era um gênio absoluto...
sim, monsenhor...
eu era um gênio absoluto...
sim, monsenhor...
esse era o meu vezo...
eu,
que todos julgavam
um
tosco
aquariano,
nascido
nesta cidade de bárbaros...
33
então eu,
um aquariano
tinha chegado....
34
e eu via...
eu via
a maldade
com os
dois punhos
cerrados...
eu via
a inveja
que
forcejava
uma janela
escura...
eu via
os
perdulários
malsinando
uns
aos
outros...
e
eu
perguntava...
não...
eu já não perguntava...
como eu poderia
perguntar
para
mim mesmo...
eu
que
tanto
me
perguntava...
e eu me embaraçava...
e
eu
me perdia...
como pode um aquariano
se perder...
mas eu me perdia...
eu me confundia...
35
mas eu via a barbárie...
eu via a fome...
de lá eu podia
enxergar...
eu via midas
perdido
num
labirinto...
midas
cravejado
de ouro
e
diamantes...
sobre
o dorso
de midas
um
rubi
encarnado...
eu via leopold bloom...
eu via tudo...
uma leve brisa doce
soprava
por
sobre
as cabeças nuas
num cochicho...
eu via uma terra parda úmida...
sim ...
eu via duas vestais de dublin...
eu havia chegado...
36
não...
lá não era o paraíso...
fomos enganados...
fomos ludibriados...
lá não era o paraíso, monsenhor...
37
como pude pisar
em
solo
tão
estranho...
meu jeito estouvado
de
aquariano
se
perdia
naquela
imensidão...
38
todos ririam de mim...
todos... todos... todos...
eu, um aquariano que ousou chegar aonde
não se chega...
eu tinha ido
contra
a
lei
da gravidade...
eu flanava de um lado
pro outro...
39
sim, monsenhor...
os canalhas desta cidade,
na certa ririam de mim...
ririam da minha derrelição...
eu um homem sem horizonte
que capengava naquele solo...
eu, desamparado....
40
mas
eu
havia
chegado...
eu via
a deusa fama
baldeando
de
valeta
em
valeta...
a deusa fama
vestida
de
azeviche...
eu
fazia
a
minha
doxologia...
mas qual deus
me
escutava...
meu rito era inócuo...
eu sucumbia sobre a planície
da desilusão...
41
aí, monsenhor...
a chuva começou a cair...
caía em pingos ralos...
pingos tênues...
procurei me quedar
em
qualquer
ancoradouro, monsenhor...
de
repente
um dilúvio...
os raios se
espatifavam
sobre as
crateras
labirínticas...
ventos
se
convergiam
num
vulcão...
redemoinhos
de
fogo
acendiam
e
ascendiam
aos
céus...
torvelinhos
de
esperança
abatidos
sob
o
tacão
perpétuo
da
maldade...
chovia, monsenhor...
42
um
pássaro
gigante
sobrevoava
sobre
a
minha
cabeça...
e
eu
suportando
todo
aquele
solo
pedregoso...
43
subitamente
começou
a
trovejar...
assustei-me
mais
ainda, monsenhor...
um
aquariano
da
minha
estirpe
sem
jaça
tem
medo...
assustei-me
com
o
trovejar...
pendiam
pétalas
de
poesia
naquele
mar
de
fogo...
mar
ígneo
onde
brotava
uma
pétala
de
rosa...
mas
logo
o
mar
se
encrespou
e
o
céu
irou
as
suas
vísceras...
o mar e o céu unidos por um só desejo...
44
eu já não entendia mais nada, monsenhor...
eu ouvia a algaravia dos silêncios...
fiquei com medo, monsenhor... muito medo...
eu,
monsenhor...
sozinho naquele solo pedregoso....
fiquei com medo....
45
um cérbero latia ao fundo...
com ondas variegadas meu cérebro sucumbia...
tive
um leve desmaio...
mas logo me avistei inteiriço....
46
e
eu
me
perguntava, monsenhor...
como
pode
um
aquariano
da minha
estirpe
ter
chegado
naquelas
paragens...
47
mas depois da trovoada
o sol
se plantou...
aquele sol parecia
um
dândi
com seus raios esféricos
e escaldantes...
48
a chuva intimidou-se...
mas
logo
o plúmbeo das nuvens desceu entre os álamos das cordilheiras....
e eu me afeiçoei aos álamos...
e eu
me afeiçoei às cordilheiras...
sentei, monsenhor, e comecei a chorar....
49
cérbero, atento, ouvia os meus lamentos...
o plúmbeo chumbo derretia e esfacelava-
se sobre os montículos espessos...
acintosamente
vários dutos entrelaçaram-se formando uma espiral elíptica...
por sobre aqueles dutos
erigiu-se
um degredo
de gelo caucasiano...
pelos
dutos transcorria uma água gélida ...
50
um vento tépido varreu os cabelos encaracolados e frouxos da harmonia...
51
e cérbero...
eu vi, monsenhor....
eu
vi
cérbero postado como a um guarda
da realeza...
não
sei, monsenhor,
a
quem
cérbero protegia...
porque lá era um vasto povoado de tédio e vazio...
52
não, monsenhor, não se tratava do hades ou do inferno...
não,
monsenhor,
não
se tratava
também
do
firmamento...
nem tampouco, monsenhor...
do purgatório....
53
não,
monsenhor...
um aquariano da minha etnia,
jamais conheceria
o cáucaso de perto...
54
não monsenhor,
dante
já havia nos mostrado
todos
os seus círculos
com seus hóspedes
e inóspedes...
55
eu,
um
aquariano
tosco,
monsenhor,
caminhava
sobre
aqueles
páramos
sem beatriz
ou qualquer outra vestal...
56
sim, monsenhor...
eu vi as vestais de dublin...
57
mas caminhava sozinho...
58
o charco se apoderava das lídimas correntezas...
o arco-íris
despertava nos interstícios das gelosias...
um abajur fulvo observava as suas saliências...
os livros repletos de ácaros aguardavam por um leitor voraz...
o sol repelia a chuva...
eu recebia encomendas de paris...
59
vinham versos bem concatenados por uma poetisa em degredo...
60
a poetisa deitava-se sobre os versos da saudade
e arpejava seu peito qual uma lira...
61
a poetisa em degredo chorava lágrimas de poesia...
seus versos emocionavam o poeta...
a poetisa resgatava o seu amor perdido através das palavras...
62
as palavras salvam, monsenhor...
as palavras salvam...
63
mas, monsenhor...
eu não estava a salvo...
eu, lá naquele labirinto, estava sem palavras...
as
palavras escorriam no sumidouro do esquecimento...
64
letra por letra ia se desajustando...
as frases já não se concatenavam...
e os canalhas da cidade aguardando um ditirambo qualquer...
os canalhas queriam qualquer coisa...
mas
não havia palavras...
as palavras já não expressavam mais nada...
as palavras não representavam mais nada...
letras eram trocadas...
parecia uma dislexia...
65
aí que não se compreendia mais nada...
não havia mais linguagem...
tudo era muito incompreensível...
os
hermeneutas
postavam suas cabeças nos incunábulos...
mas os incunábulos eram indecifráveis...
66
uma tristeza se abatia sobre mim...
67
de repente o tédio...
a solidão...
68
e
eu ia palmilhando aquele solo pedregoso...
aguardava uma ligação qualquer...
mas não havia sinais...
eram nove horas da manhã...
sim, monsenhor...
lá eram nove horas da manhã...
era um fuso preciso...
69
um ato falho apoderou-se de mim...
eu
agarrava-me à memória tentando escapar daquele pesadelo...
minha memória fraquejava...
70
de repente o silêncio...
ao fundo um ruído...
não, monsenhor, não era uma nota musical...
era
um ruído, monsenhor...
sim,
monsenhor,
eram
vários ruídos...
não, monsenhor,
não se agrupavam
em notas musicais...
71
aí pensei, monsenhor:.
deve ser schönberg...
deve ser varèse ...
72
deve ser...
não...
não...
não deve ser...
73
a
porta
abriu-se
de
chofre...
passos
nas
escadas...
silêncio...
outro passo...
pelo
postigo alguém
espiava...
ouvi uma outra voz...
não,
monsenhor...
eu
não
estava
mais
sozinho...
quem estaria comigo, monsenhor...
74
as nuvens se adensavam no céu...
eu ouvia espasmos...
agora alguém subia a escada...
outra
dislexia...
aí
pensei,
monsenhor...
ela vem chegando...
vem
sorrateira...
a passos lentos, monsenhor...
ela
vem chegando...
ela
vem pontuando o meu corpo...
ela vem anunciando...
75
uma turbina estremecia os meus tímpanos...
eu já não compreendia mais nada...
outro passo...
mais um...
uma cortina sacudida...
76
agora um diálogo...
pés nas escadas...
o diálogo se estende...
panegíricos
de um lado a outro...
uma admoestação...
o vazio...
a
desesperança...
eu ia captando tudo,
monsenhor...
mas eu sentia medo....
77
ser um aquariano é terrível, monsenhor...
qual a sua lua,
monsenhor...
não monsenhor, não mo diga...
não mo diga....
78
o
diálogo num crescendo...
ao fundo um uníssono...
uma queda...
uma leve queda...
79
nove e dezessete, monsenhor,
e o pesadelo não passava...
o tempo originário revelou-se...
cheguei
ao
limite
do percurso...
eu precisava voltar...
a tontura que se seguiu era uma grande revelação...
80
recaída
e
recuperação...
81
história com final feliz...
82
uma voz....
83
tonitruante....
84
meu batismo.....
85
minha prima tonsura....
86
palavras
jogadas
ao
léu...
palavras
sem sentido...
palavras...
palavras...
palavras...
87
e os canalhas, monsenhor...
os
canalhas
ririam...
todos
canalhas
ririam,
monsenhor...
mas
eu não me deixei abater...
segui jornada adentro...
88
fui
caminhando...
avistei
um detento sentado em praça pública...
mercadejava
seus signos...
um escriba funéreo o acompanhava....
89
gentis homens,
monsenhor...
eu os via de forma translúcida...
um véu de neblina cobria-lhes as faces....
90
a multidão caminhava desesperadamente...
os carros alçavam as suas sirenes...
ambulantes
num
alvoroço...
mendigavam
espórtulas
mendigavam moedas...
vinténs....
mendigavam pão...
91
a cicuta
milimetricamente
sorvida...
92
livros...
jornais...
badulaques
à
mancheia...
música
em
excesso...
abundância...
desperdício...
padres
nas praças...
messiânicos com seus cantochões...
93
circenses com línguas de fogo...
labaredas
nos
cruzamentos...
helicópteros
sobrevoando
os
heliportos...
stress...
tensão...
bílis...
ódio...
malversação...
anseios gratuitos...
pactos...
desordens...
assassinatos...
94
seqüestros...
injúrias...
difamação...
dinheiro...
ouro...
piruetas...
extorsões....
amabilidades secretas...
sofistas decadentes...
95
rio
caudoloso...
labirintite...
pressões
desarticuladas...
lágrimas...
vestígios...
arruaças...
dízimos...
moedas...
moedas...
moedas...
gincanas...
espermas
contaminados...
exibições
gratuitas...
quinze minutos...
menos...
muito menos...
96
um minuto...
nada...
nada...
97
revolucionários...
98
utópicos...
99
caleidoscópio...
vertigem...
atores mambembes...
saraus...
cantos...
festas...
ágora...
parlamentos...
agora...
já...
daqui a pouco...
um
instante,
por
favor...
não...
eu
quero
agora...
agora...
já...
imediatamente...
balas....
molotovs...
favelas...
samba...
cachaça...
100
vazio...
101
vazio...
vazio...
vazio...
102
buraco negro...
buraco...negro....
103
choupana...
messkirch...
104
novolin 70/30...
105
alaíde...
ataúde...
106
alaúde....
starlix....
cho....cho...cho...
biografemas....
107
música...
saudade
vai
voltar...
eu nada vou dizer...
desculpa se eu chorar...
108
ramal 245...
ramal 236...
ramal 239...
109
o gato como uma estátua...
110
heidegger...
islã...
benjamin...
111
buraco
negro...
choupos...
cachopas...
buraco
negro...
dormir...
conluios...
falsas
cordialidades...
pequenas desavenças...
o
olhar
despercebido...
a
mão
na nuca...
diálogos
frugais...
dieta....
dependências...
buraco negro...
112
o mercador...
e-mail...
buraco negro...
113
e eu ali , monsenhor...
e o tédio se apoderando de mim...
eu
ouvia vozes, monsenhor...
uma
música
indecifrável ao fundo...
os prédios...
revirava-me
no
leito
da
aflição...
as
encostas
perfuradas
de desespero...
reminiscências...
óstracos...
a voz do poeta...
o poeta erigido num azulejo...
o poeta de black-tie....
114
dez
para
as três...
o fuso preciso...
mais portas...
calendários...
livros
empilhados...
varal
esvoaçando...
rota
de ícaros...
cidade
se
verticalizando...
esporro...
raiva
gula...
destemperança...
gráfico
glicêmico...
perfurar o lóbulo...
não perfurar...
mais uma refrega ganha...
eludir
todo
pensamento
nefasto...
bravatas
no ar...
revival...
o
eterno
retorno...
nietzsche...
pop...
o esconso...
o guardado sob o véu...
a resistência....
cioran...
ter
suprimento no bornal das idéias...
de que adianta....
115
de que adianta, monsenhor....
116
duas e cinquenta e sete...
eram duas e cinquenta e sete...
117
já não eram mais...
118
o fuso impreciso...
119
nada mais era....
120
o sumidouro...
o sorvedouro...
121
a barba por fazer...
espelho...
ducha...
motores turbinados...
a dieta...
o rigor...
a luta com o imponderável...
o exercício....
122
e eu palmilhava as suas jardas...
as suas medidas...
a areia na ampulheta...
o tempo medido...
o fuso preciso...
123
eu palmilhava, monsenhor....
124
eu,
um
aquariano...
o décimo primeiro signo do zodíaco...
125
o fuso preciso...
rato no chinês...
126
todos ririam de mim, monsenhor...
todos...
todos...
todos..
mas eu palmilhava.....
127
09 de março...
o fuso difuso ...
o fuso impreciso...
imprecisão...
idéias suicidas...
lâminas...
estiletes...
morfina benjaminiana...
o medo do infinito...
labilidade de pensamentos...
resgate...
curvas...
parábolas
afetos...
desafetos...
retrospectiva...
perdas e danos...
saldo equitativo...
protelação dos fatos...
vale a pena...
não vale a pena...
procura do detalhe...
deus está no detalhe...
procura do detalhe...
cama...
cama...
cama...
pensamento...
despensamento...
toca o telefone...
o rescaldo atende...
tudo bem...
uma leve depressão...
dias renovados...
o fio de esperança...
primeiras palavras...
strasse...
bild....
strand...
mutter...
vater...
ich...
spiel...
lieben....
aber...
logos
eti
gar
arsenico
o buraco negro...
vazio...
o medo do infinito...
128
o medo do infinito....
129
o medo do infinito...
130
o medo do infinito...
131
o medo...
132
infinito...
133
infinito...
infinito....
sim, monsenhor...
esse é o meu vezo:
o futuro...
sim, monsenhor...
o futuro dura muito tempo...
mas é uma merda... monsenhor....
uma merda...
sim, monsenhor, eu lhe garanto ...
eu, monsenhor...
um aquariano, concebido em meados de maio,
quando as flores restabeleciam o seu viço e as sebes
ornamentavam o asfalto com seu juncos...
sim, monsenhor, eu lhe afirmo:
o futuro é uma
merda... uma merda...
mas não durará muito tempo
nas mãos dos canalhas desta cidade.....
sampa/séculoxxi
wilson luques costa
Comentários
Postar um comentário