A DÚVIDA SHAKESPEAREANA
Não pensar...
Abolir todo e qualquer pensamento
De fato: as coisas adredemente preparadas
A quantidade exata de morfina e pronto
Sim
Veja que paradoxo ou quase um cogito cartesiano
Como pensar pelo pensamento o nada...
Oh, sim!
Creio que desta vez resolveste um problema filosófico
E tu que vivias a negar o nada
Tens agora o que sempre negaste em vida
Por favor, mudemos de conversa
Não...
Fiquemos nesse conceito filosófico
Fenomenologicamente o nada a ti te aparece
Posto desse modo é compreensível que naquele exato momento e somente naquele exato momento é que se dá a apreensão fenomenológica
Tu...sujeito (hipókheimenon) conhecedor do objeto
Mas não pensar
A certeza exata
E tu que duvidaste e puseste em xeque todo tipo de certeza
Falemos do desespero
O que temes é o desespero e a não possibilidade de não poder escarnecer de modo efusivo de sua figura
Sim!
O medo!
Ter o medo do medo
Da impotência do não retorno
Todos os abraços te serão impotentes
A fuga da calma
Não ter a calma suficiente
A compreensão
A certeza é o que mais te dói
Sim! Já falaste
Mas por que te apegas a esse corpo escasso
Tudo voltando ao mesmo
Serás o que foste antes
O medo
O estômago carcomido por morcegos
Lépidas baratas a ronronar na tua carne
Ratos
Lagartixas
O roxo e o amarelo desfalecendo-se entre as murchas rosas de teu corpo
Medo do relógio contínuo
Relógio do sol substituindo as tuas horas
O balancim emperrado
Imóveis panteras do tempo
Medo da perda dos laços
A vingança entorpecida
Uma pedra única cinzelando os teus dias
Lápide precisa
Uma
Duas datas
Um nome
Sobrenome
Categoria inválida dentro do cosmo apeirônico
Nos primeiros meses as visitas constantes
Depois o abandono
Depois de alguns dias purgação do sangue
Ágape das drosophilas zombeteiras
O sangue coalhado adubando a terra ignota
Restarão ainda cartilagens
Unhas que insistirão em crescer
Debalde tarefa das unhas
O contorno da caveira delineando-se sobre o teu corpo
Tu
Entregues à estupidez dos dias
Ossos
Um crânio de Hamlet ou outro qualquer
Evocação apenas
Neurônios carcomidos pelos curto-circuitos das sinapses que se desfazem
Crianças brincando com o teu fêmur
Nas ruas uma bagatela pelo teu osso
Medo também quando chegam as louvaminhas
As pseudas cordialidades
As coroas superfaturadas pelos floristas plutocráticos
Carpideiras ao redor
Velas dilatando-se sob o olhar das preces
Um par de sapatos comprado às pressas
Débito à posteridade
Único legado
O corpo exposto
O pecado ressuscitado
Em black-tie o teu corpo no esquife
O abraço abnegado
Tortura do tempo que se congela
O caminho
A sirene
A terra
O último torrão grotesco
A solidão perene
A pá na parede
A tarde que estertora
Falta de ar
Posicionamento correto
Ausência da mater com os biscoitos de madeleine
Castas de indigentes carnificinas
Tudo hermeticamente fechado
O corrosivo óleo da eternidade
A incorporação à natureza
Engrenagens que se desarticulam
Nem mais reconheces o teu corpo
Soma helênico
Movimento longínquo nas esquinas
Nos bulevares
Riem à vontade
Desconhecem os seus dias de infortúnio
Altas gargalhadas
Algumas lembranças esparsas
O nome que fica na memória de poucos
A memória sendo julgada
No ossário o metacarpo que resite
Lá fora um tempo que voa
Lá dentro um tempo que escoa
Lento
Lentíssmo
Nada pensar
Abolido todo e qualquer pensamento
Um
Dois meses
As visitas que rareiam
Algumas toscas reminiscências
Dez
Vinte anos
Ossos jogados ao relento
Como não pensar pelo pensamento o nada
Oh, sim
De fato
Creio que desta vez resolveste um grande problema filosófico
Tiveste de fato a devida compreensão de teu ser
A ontologia precisa
Agora e para sempre
Nada pensar...

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