A CASA SOTERRADA



ainda posso vê-los daqui...
ainda vejo uma penumbra fina...
quiçá duas...
três...
quatro....
cinco...
ainda posso vê-los daqui...
francisco dá ordens a mercedes....
mercedes retruca e não se faz solícita...
pega do quarador e distrai-se com uma dança flamenca...
ainda posso vê-los daqui...
o garoto...
um serelepe...
assim lhe chama o seu avô...
esguicha água matizada com limão de cheiro...
o avô lhe punge com vergalhões de maldade...
pirracento...
agourento...
pachola...
vagabundo...
estúrdio...
anacoreta de uma figa...
basbaque...
penduricalho de trem...
ainda posso vê-los daqui...
o radinho colado ao ouvido...
corinthians 2 x 0 palmeiras ...
essa está no bolso...
vê se não fica passando com esses pés sujos sobre o tapete...
só eu trabalho nessa casa...
oh, que vida que eu levo...
por que já não dá logo o endereço lá de cima...?
esse só vive no bar...
ah! bebeu novamente...?
juro...
juro...
esse neto não é meu...
precisa ter pedigree...
progênie...
etnia...
oh...
eu passei a roupa agora...
oh, santo antonio...
me livra...
me livra...
oh, meu santo antonio...
vem...
vamos jogar tômbola...
é fim de ano...
chama o toninho e a judite...
vamos bater lata...
armando...
acenda a fogueira...
seu avô trouxe pinhão lá da light...
vê se não vai beber de novo...
vem vamos bater lata...
sobre a televisão a foto de minha avó e a equipe campeã do
primeiro turno de 1969...
no guarda-comida as fotos de avós, tios, primos...
olha, mãe...
quem é esse de blusa vermelha...?
nossa, como eu estou ridícula...
nesse dia eu toquei castanhola...
deixa eu ver essa aqui...
para, menino...
tio, faz cortante para mim...
tá na hora de trabalhar, menino...
eu com treze anos já trabalhava...
vai querer ser o quê na vida...?
pensa que vai viver de bilhar como aquele seu tio...?
o rádio está ligado...
o locutor não se cansa de irradiar...
a máquina de lavar ainda está travada....
já é domingo...
ninguém vem visitar...
a pereira intenta uma flor...
as corruíras assoviam um assovio desafinado...
a jabuticaba impõe o seu olhar de coruja...
amoras fendem seus lábios encarnados...
esboçam um sorriso...
agora já é quarta-feira de novo...
as cadeiras perfiladas na cozinha....
a anciã está ausente...
os ponteiros do relógio caminham resolutos...
dependurado na parede o quadro com a família...
o patriarca segura uma taça de champanha...
o cheiro de mofo exala pela cozinha...
uma traça risca uma foto de ponta a ponta...
já é domingo de novo...
ninguém vem visitar...
a pereira intenta uma flor...
as corruíras assoviam um assovio desafinado...
a jabuticaba impõe o seu olhar de coruja...
amoras fendem o seu sorriso...
uma linfa vermelha, um aljôfar de lágrima, escorre sobre a casa....
ninguém mais vem visitar...
a casa está soterrada....
mas ainda posso vê-los daqui...











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